Imagem tirada da net |
A transição do filme mudo para o sonoro deixou um rasto de desemprego nos actores, gente que não conseguiu passar de um modo de representação assente na linguagem gestual para um mode de representação assente na linguagem gestual e na linguagem sonora. Não bastava as pessoas movimentarem-se, tinham de falar em simultâneo.
Aplicado à vida real, e não à existência da 7ª Arte, o filme mudo deveria reactivado como escola de observação e de decifração. Eu explico: o senhor X está numa festa e conversa com a senhora Y, enquanto deambulam pelo recinto. Há alguém que, de câmara de filmar em punho (ou apenas de smartphone em punho) apanha o diálogo: diga-me, o que faz na vida? Pois, eu faço isto e aquilo; e a senhora? Ah, pois é, eu já estive nesse ramo de actividade, mas agora mudei para isto. Muito bem, percebo tudo. Já agora, posso falar da sua beleza? Sim, claro, gostaria de subir para o meu quarto? Isto é, numa meia dúzia de linhas de um diálogo, ficámos a saber tudo sobre o senhor X e sobre a senhora Y. Se o diálogo continuasse, em breve identificaríamos os fetiches, os feitios, os gostos alimentares, os hábitos de desporto, as preferências literárias, as doenças e os achaques. Em bom rigor, e a não ser que algum dos interveniente do diálogo se destaque de alguma forma (por uma assimetria chocante nos olhos, por uma calvície precoce ou por um busto de dimensões fora do vulgar) fixamo-nos na fala, não na postura. Fixamo-nos no óbvio.
Imaginemo-nos agora num filme mudo, com os mesmos senhor X e senhora Y a deambularem pelo mesmo recinto. Não podendo perceber do que falam, a não ser que dominemos a técnica da leitura labial, resta-nos tomar atenção à forma como andam, como se tocam, como fazem uma espécie de dança onde entram cabeça, olhos, lábios, mãos e pernas para tentar discernir quem são aquelas pessoas, o que as excita ou aterroriza, como comunicam um desejo ou uma repulsa, quais os traços de carácter que se sobressaem em cada um. Ver um filme mudo da vida real é um exercício de decifração e de encantamento: nada é óbvio, a não ser a tal possível assimetria dos olhos ou a dimensão fora do vulgar de um busto. Tudo o resto tem de ser adivinhado e interpretado e ambos os exercícios - de adivinhação ou de interpretação - são de superior interesse.
Numa época em que todos nos conhecemos por aquilo que dizemos, talvez fosse importante fomentar o conhecimento do outro pela forma como ele anda, agita as mãos ou segue o olhar de quem lhe está à frente.
JdB
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