Em o Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, pela boca de Bernardo Soares, revela o seu sonho:
Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, com a casa quieta, porque os donos saíssem ou se calem, fecho as vidraças da minha janela, tapo-as com as pesadas portas; imerso num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda e prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um ou outro mais sóbrio, o conviva lento que ficou sem razão.
Num livro de que não me lembro qual, nem sequer afianço a exactidão da citação, Eça de Queiroz fala nos solteirões, majores reformados do sentimento.
Dei por mim a pensar nestas duas citações, não só porque se falou delas numa aula, mas porque de repente, surgidos de uma qualquer reforma, as televisões fervilham de majores-generais que comentam a invasão da Ucrânia. Confesso a minha ignorância: até ao dia 24 de Fevereiro, mas coisas menos coisa, não sabia da existência de uma tal patente. Para mim, de major passava-se para tenente-coronel e antes de general era-se brigadeiro (penso eu de que...)
Cem anos (um pouco mais no caso do Eça) separam Fernando Pessoa da invasão da Ucrânia manu militari. Todos estes militares que, com sapiência e enviesamento, comentam a estratégia dos beligerantes, estão na reforma. Porém, enquanto que para os majores pessoanos ou queirosianos a reforma era o contrário da guerra, era uma espécie de sossego para quem tinha atingido o topo da carreira, para os majores da actualidade a reforma é outra coisa: não há guerra, não há inimigo, não há soldados para chefiar, porque a pirâmide está invertida - somos um país de oficiais a disputar um ou dois praças...
Diz ainda Bernardo Soares: ser major reformado parece-me uma coisa ideal. É pena não se poder ter sido eternamente apenas major reformado. Ele lá saberia porquê, ele que talvez também tivesse sido um major reformado do sentimento.
JdB
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