Embora ache a frase irritante, gosto de usar este início de conversa: "sou do tempo...". Sim, eu sei que faz de mim um velho em potência, no corpo e no espírito. A utilização da frase tem o seu quê de útil, já que me situa como contemporâneo daquilo a que faço referência, isto é, posso dizer que sou do tempo em que não havia telemóvel. Nessa linha de raciocínio, não posso dizer que sou do tempo da pena de morte. O impacto da frase é diferente, porque relativamente à primeira, eu sei como era, relativamente à segunda só posso imaginar como era.
Sou do tempo do começo da democracia, isto é, tinha 16 anos aquando do 25 de Abril. Como já aqui o escrevi, havia linhas claras: havia quem, como eu, militasse no CDS, havia quem o fizesse no PPD ou no PS. Havia socialistas, comunistas, maoistas, democratas-cristãos ou gente da linha trotsquista. As pessoas a quem esta classificação se aplicava defendiam ideias claras, sobre assuntos claros. E sabíamos quem estava de um lado ou do outro da barricada. As coisas eram, de alguma forma, claras e o que cada um de nós era servia de identificação ou de acusação.
Os tempos modernos esbateram tudo, com algumas excepções. O CDS desapareceu mas há o Chega e a Iniciativa Liberal e o Livre, mais o Bloco de Esquerda que é uma espécie de amálgama e o PCP que define a União Soviética que, entretanto, mudou de nome. Já ninguém sabe o que é ser-se maoista, marxista-leninista ou trotsquista, porque já ninguém quer saber. Teríamos de saber o que defendia o Trotsky ou o Mao, e já não precisamos disso para estabelecer inimizades ou juntarmos armas de arremesso.
Sou do tempo em que se era qualquer coisa nítida; agora a nitidez é outra: as pessoas são vegan ou são carnívoras; gostam de corridas de touros ou são animalistas; acreditam que há dois sexos ou são a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou acreditam que o sexo é uma construção e que a sigla LGBTQ tem um intervalo aberto à direita, para que se acrescentem letras das opções a defender.
Dantes, numa espécie de casas não se recebiam comunistas; nas casas de sentido oposto não se recebiam fascistas. Agora o crivo faz-se por via do que se põe no prato. A assunção de um estilo de gastronomia carnívora é motivo de desconfiança, mesmo que se seja monárquico (o que tem uma valência sociológica). Ser-se vegan é ser-se divorciado há quase 50 anos - há gente que olha para estas pessoas com desconfiança e desagrado. Já ninguém quer ser social democrata - as pessoas identificam-se por via de uma gastronomia da sua preferência.
Sou doutro tempo...
JdB
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