ARMAS VERBAIS
Quem viveu, ainda que com pouca idade, o 25 de Abril de 1974 e a agitação pró-comunista que, rapidamente, se lhe seguiu, alimentada pelo PREC e pelo partido mais preparado para manipular “processos revolucionários” a seu favor (o PCP de sempre), lembrar-se-á da forma mordaz com que qualquer cidadão podia e era caluniado, sem dó nem remissão. Bastava chamar-lhe «fascista» a plenos pulmões, para taxar o ‘bulliado’ de inimigo público. Ainda hoje, toda a extrema esquerda insiste nesse golpe soez para tentar descredibilizar o adversário, esquivando-se habilmente ao debate das ideias, substituído pelo ataque ad hominem.
A diabolização do alvo a abater é recorrente nas guerras e nas guerrilhas urbanas, para simplificar a identificação do inimigo e desqualificá-lo enquanto cidadão com direito de cidadania. Sempre se fabricaram grupos parias, que podem (frequentemente, devem) ser ostracizados, em nome da sobrevivência da maioria. Nos tempos antigos, os primeiros a ser marginalizados foram os doentes infectocontagiosos e os povos conquistados automaticamente reduzidos à condição de escravos. Perpassa pelo livro multimilenar que é a Bíblia o epíteto de «leproso» para indicar a obrigação de viver longe da sociedade e andar com badalos para assinalarem as suas movimentações. Se se atrevessem a aproximar-se em excesso dos saudáveis, estes tinham o direito de os apedrejar. Por isso, foi tão revolucionária e louca para os padrões medievais, o abraço de S.Francisco de Assis a um leproso, com máximo risco de contágio. Era a sua forma directa e radical de dar a vida pelo próximo, como Cristo pedira, sem excluir ninguém. Para tanto, resolveu começar pelo excluído que mais repugnância física lhe causava, privilegiando a ternura à defesa da sua saúde. Pouco lhe importava que a medicina do seu tempo não tivesse cura para a lepra, caso a contraísse.
É com plena intenção que as potências beligerantes recorrem a impropérios cirúrgicos para denegrir quem pretendem ultrajar e assim facilitar o extermínio posterior. Nos cenários de extremismo sanguinário que são as guerras é fácil uma injúria certeira inflamar-se e fazer perigar a vida do acusado. Precisamente, um período fervilhante no fabrico e no uso de rótulos tremendos foi a Segunda Guerra Mundial: de “judeu” a “comunista”, “colaboracionista”, “russo” & “da Europa de Leste” (na Alemanha), “alemão” & “nazi” (na Rússia).
Também a invasão da Ucrânia pela Rússia confirma a regra. Para justificar ou mesmo desculpabilizar o recurso às armas, a calúnia verbal antecipou-se aos avanços bélicos ordenados pelo Kremlin, como lembra este artigo certeiro, gentilmente cedido pelo autor:
«O insulto
Assistimos angustiados ao sofrimento de multidões de ucranianos. Continua a haver numerosas guerras, diz o Papa, «contudo, esta guerra cruel e insensata, como todas as guerras, tem uma dimensão maior e ameaça o mundo inteiro; não pode deixar de interpelar a consciência de cada cristão e de cada igreja». Tantas dezenas de milhar de ucranianos mortos, milhões de ucranianos perseguidos, separados da família, refugiados em países que não conhecem! Os jornais contam um a um os dias que este conflito horrível se arrasta, sem se vislumbrar no horizonte a esperança de que a comunidade internacional consiga travar os russos.
Do lado russo, há milhares de soldados mortos, a economia afunda-se no esforço de conquistar a Ucrânia e ouve-se o estribilho doloroso de uma injúria repetida contra quase todos os habitantes do mundo. Qual a origem deste insulto?
Nazis e soviéticos começaram de candeias às avessas, até ao pacto de 1939 que definiu entre eles a expansão territorial de ambos. A Alemanha ficava com direito a anexar países vizinhos e metade da Polónia; a União Soviética conquistava a Estónia, a Lituânia, a Letónia e partes da Polónia, da Roménia, além de manter em seu poder a Bielorrússia, a Ucrânia, a Chechénia, a Geórgia, etc. Nessa altura em que o pacto foi útil para o alargamento do domínio soviético, os alemães eram os «irmãos nacional-socialistas». O problema surgiu quando, depois de engordar a União Soviética com tantas conquistas, Hitler decidiu invadi-la. Nessa batalha, longa e sangrenta, alguns povos apoiaram a Rússia para se verem livres dos nazis e outros, como a Ucrânia, juntaram-se à Alemanha para se verem livres da Rússia. O resultado do gigantesco conflito cifrou-se em dezenas de milhões de mortos e, como a Alemanha acabou derrotada, os soviéticos apoderaram-se de todos os países do pacto, mais a Hungria, a Bulgária, parte da Alemanha, da Finlândia e falharam, por um triz, a Áustria. Além dos extensos territórios que anexaram a Sul.
Os dois insultos mais fortes do léxico comunista, «nazi» e «fascista», remontam a essa traição dos nazis. Nunca mais se falou de «irmãos nacional-socialistas». Até hoje, todos aqueles que os comunistas combatem são «nazis e fascistas». Não importa se as pessoas não sentem afinidade com o nazismo ou o fascismo. Se são alvo da ira comunista são, por definição, «nazis e fascistas».
Aliás, esse é justamente o ingrediente fundamental de um insulto: atribuir a alguém um conceito que ele rejeita. Se chamarem «russo» ao Putin, ou «ucraniano» ao Zelenskiy, eles agradecem, tal como se chamassem «nazi» ao Hitler, ele respondia alegremente «Heil!» e se chamassem fascista ao Mussolini, este dizia comprazido «Eia, eia, eia! Alalà!». Em contrapartida, qualquer saudação se torna insultuosa quando se aplica à pessoa errada. Se chamarem «ucraniano» ao Putin, ele não acha graça. O mesmo, se chamarem «russo» ou «nazi» ao Zelenskiy. Ou se chamarem «mulher» a um homem, ou «homem» a uma mulher.
Ainda hoje, nos meios ligados à tradição comunista soviética, as palavras «nazi» e «fascista» são as mais usadas para insultar quem quer que seja. Por isso os comunistas de orientação chinesa lhes chamam precisamente «social-fascistas», para os enfurecer maximamente.
Quando o regime comunista implodiu e a Rússia concedeu a liberdade a muitos países —entre eles, a Ucrânia—, trocou o próprio nome de União Soviética para Federação Russa, para significar que abandonava a ditadura e começava uma era de paz e liberdade. Desde 1991 até agora, os ucranianos era um povo-irmão, reconhecido pela Rússia; agora, a Rússia decidiu invadi-los e recuperou o antigo insulto: fascistas! Nazis!
Por mero acaso, o chefe desses «nazis» é filho de judeus, tão duramente perseguidos pelo regime nazi que Zelenskiy não tem nenhuma simpatia pelo nazismo… Mas é da essência do insulto não se adequar ao ofendido!
Corre pela internet a imagem desta página, retratando humoristicamente os países do mundo tal como o regime russo os classifica, em variantes de nazi-fascismo. Podíamos acrescentar os «neo-fascistas» e mais variantes divertidas. Os epítetos mais cómicos são o da América do Sul («futebolistas nazis») e sobretudo o da Austrália. Como a Austrália está no hemisfério Sul, são nazis de pernas para cima e cabeça para baixo: o insulto escreve-se de pernas para o ar.»
Fica a pergunta sobre os antídotos para conter e também para curar as feridas deste bullying verbal e de alcance tão longínquo no tempo. Ainda hoje, ser nazi, SS ou afim é insultuoso. Oitenta anos volvidos, transferir o odioso de uma má memória histórica para os russos é bera mas difícil de evitar, se o Kremlin continuar a arrastar esta ofensiva impiedosa. Cada dia que passa, aumenta a ferida…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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