Partimos de um antigo aforisma da tradição judaica: «O mundo é como o olho: o mar é o branco, a terra é a íris, Jerusalém é a pupila e as imagens nela refletidas é o templo». O dito ilustra de maneira nítida e simbólica a função no templo de acordo com uma intuição que é primordial e universal.
São duas as ideias subjacentes à imagem. A primeira é a de “centro” que o lugar sagrado deve representar: o horizonte exterior, com a sua fragmentação e com as suas tensões, converge e aplaca-se numa área que pela sua pureza deve incarnar o sentido, o coração, a ordem do ser inteiro.
No templo, portanto, “con-centra-se” a multiplicidade da realidade e da vida que nele encontra paz e harmonia: pense-se por exemplo na planimetria de certas cidade com radiais ligadas ao “sol” idealmente concebido, representado pela catedral colocada na charneira central urbana (Milão é um exemplo evidente, com a catedral, como Nova Iorque é o testemunho de uma visão diferente, mais dispersa e babélica).
Do templo, depois, “des-centra-se” um sopro de vida, de santidade, de iluminação que deveria transfigurar o quotidiano e planta geral da cidade.
É neste ponto que entra em cena o segundo tema subentendido ao dito judaico que evocámos: o templo é a imagem que a pupila reflete e revela. Ela é, portanto – através da luz e das cores – um signo de beleza. Neste sentido, uma arquitetura sacra que não saiba dialogar com a natureza circunstante, que não consiga usar de maneira “esplêndida” a linguagem da luz através das janelas e dos vitrais, e que não seja portadora de harmonia, decai paradoxalmente da sua função, torna-se “profana” e “profanada”.
É do cruzamento destes dois elementos, a centralidade e a beleza, que desemboca o que o grande arquiteto francês, autor da admirável igreja de Ronchamp, Le Corbusier, definia de maneira fulgurante como «o espaço indizível», o espaço autenticamente santo e espiritual, sagrado e místico.
Estes dois eixos arrastam consigo muito corolários: pensemos na “surdez”, na inospitalidade, na dispersão, na opacidade de muitas igrejas construídas sem respeito pela voz e pelo silêncio, pela liturgia e pela assembleia, pela visão e pela escuta. Igrejas nas quais a pessoa se encontra perdida como numa sala de congressos, distraída como num pavilhão desportivo, esmagada como numa arena, embrutecida como numa casa pretensiosa e vulgar.
Sabe-se que no diálogo entre arte e fé nestes últimos tempos consumou-se uma espécie de divórcio. De um lado, no âmbito eclesial recorreu-se muitas vezes ao rastreamento de módulos, estilos e géneros de épocas precedentes, ou houve uma orientação para a adoção do artesanato mais simples, ou, pior, ocorreu uma adaptação à fealdade prevalecente em muitos novos bairros urbanos e no edificado agressivo, erguendo edifícios sagrados semelhantes, como dizia sarcasticamente o P. David Maria Turoldo, garagens sacrais onde se estacionou Deus e os fiéis estão alinhados.
Por outro lado, todavia, também a arte tomou as ruas da cidade secular, arquivando os templos, os temas religiosos, os símbolos, as narrativas, as figuras bíblicas e religiosas. Abandonou, considerando-a perigosa, toda a proposta de uma mensagem, considerando-a uma manifestação ideológica, consagrou-se a exercícios estilísticos cada vez mais elaborados e provocadores, confiou-se a uma crítica incompreensível à maioria e tornou-se servidora das modas e das exigências de um mercado não raro artificioso e excessivo.
Seria preciso retornar à ideia de que arte e fé são idealmente irmãs, querendo ambas procurar – como dizia o grande pintor Paul Klee em relação à arte – «não o puro e simples visível, mas o invisível que está no visível».
É certo que a ligação entre arte e liturgia é complexa. Todavia o percurso feito já avançou muito no que diz respeito à arquitetura (…). É significativo que quase todas as “estrelas” da arquitetura tenham realizado pelo menos um templo, assim como nos diferentes contextos locais é vivo o empenho em edificar novas igrejas que unam em si fé e beleza. Infelizmente nestes últimos tempos abriu-se também o capítulo muito delicado e complexo da desafetação e do reuso de templos que deixaram de ser necessários ao culto devido à mutação das estruturas urbanas e sociais. Trata-se de um tema que deverá ser atentamente encarado.
A tudo isto acrescentamos um apêndice específico. É também importante o compromisso de transfigurar com novos modelos artísticos a totalidade dos bens litúrgicos internos às igrejas (altares, estátuas, pinturas, ambões, sacrários, etc.) que sejam de qualidade estética, de modo a poder cumprir o que desejava um dos maiores teólogos ortodoxos do século XX, Pavel N. Evdokimov (1901-1970), quando escrevia: «As formas arquitetónicas de um templo, os frescos, os ícones, os objetos de culto nunca são reunidos como se estivessem expostos num museu; como os membros vivos de um corpo, são permeados por uma vida própria misteriosa, imersos num único canto de louvor».
Último presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Chiesa Oggi
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.08.2024, aqui
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