Republico este texto, não porque me falte inspiração (também falta...) mas porque andei à procura de textos que tenha escrito ou publicado sobre gratidão. O assunto veio-me à mente no decurso de um casamento: na homilia, o celebrante falou nas três expressões que o Papa Francisco suscitava que se repetissem diariamente: desculpa, obrigado, se faz favor. E lembrei-me de uma expressão que costumo repetir e da qual pessoa próxima não gosta. Relativamente a alguém que teve uma papel importante numa fase qualquer da minha vida, digo: tenho com fulano uma dívida de gratidão. E lembrei-me disto um destes dias, ao pensar no gosto que é agradecer a alguém a sua existência, aos mais diversos níveis, na nossa vida.
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Ao nível do indivíduo, as diferenças de entendimento de uma mesma palavra ou de um mesmo conceito são enormes. Alguns exemplos, apenas: aquilo a que eu chamo conservação de energia outra pessoa chamará preguiça; uso muito a expressão dívida de amizade; há quem não goste da expressão, dando-lhe um carácter menos positivo. Em bom rigor, neste último caso não me sinto obrigado a nada nem a ninguém. Sinto, isso sim, que relativamente a algumas pessoas fui beneficiário da sua atenção numa altura específica, e que isso me ficou no coração. Só talvez não possa ser devedor porque não sei se conseguirei pagar a dívida...
Por último, um dia destes dei por mim a referir-me a uma qualidade grande que certa pessoa tinha: gratidão. Esta pessoa agradece sistematicamente o apoio, atenção e confiança que determinada família lhe deu ao longo de mais de duas décadas. Simpatizo com a ideia de gratidão, embora alguém me diga que não gosta de sentir que as pessoas lhe agradecem alguma coisa. Se acharmos que os outros não devem agradecer-nos nada, será que conseguimos agradecer-lhes convenientemente?
Num outro plano há, entre o nosso vocabulário e aquilo que somos e fazemos, uma relação biunívoca importante: a maneira como agimos afecta o nosso vocabulário, mas o vocabulário que utilizamos também afecta aquilo que fazemos. Isto é, nas palavras de um orgulhoso empedernido, a expressão perdão faz pouco sentido (e talvez ele nunca a use), mas, se utilizarmos persistentemente a expressão perdão talvez acabemos por incorporar o seu conceito no nosso léxico comportamental.
Também pelo referido acima é importante, para quem é crente, a frequência da igreja. De tanto ouvirmos expressões como serviço, próximo, amor, compaixão, acabamos por interiorizar a necessidade de os materializarmos em actos constantes. É muito por isso que alguma abordagem actual aos problemas alheios assentam em ideias que me são desconfortáveis, porque muito voltadas para o próprio: tens de ser feliz, tens de pensar em ti, tens de olhar para o que é bom para ti. Esta atitude de pensar primeiro em nós próprios talvez só seja válida nos aviões: em caso de despressurização da cabine, só depois de colocarmos a nossa própria máscara de oxigénio é que deveremos por a de uma criança. O léxico cristão (por oposição a um certo léxico laico) usa expressões mais voltadas para o outro, para o próximo, para os que sofrem ou precisam mais.
A bondade - no seu sentido mais genérico - não é privilégio nem monopólio dos crentes. Mas há uma importância no vocabulário que usamos no dia a dia. Será muito difícil sermos santos se nunca proferirmos a palavra; será muito difícil percebermos o conceito de ajuda se nunca a pedirmos, alegando os mais diversos motivos.
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