14 agosto 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 O TURNING POINT DE UM NAZI FERRENHO

Após a derrocada do Terceiro Reich, a 8 de Maio de 1945, começou a expectável perseguição aos oficiais nazis, em especial aos dirigentes das temíveis SS. Curiosamente, percebendo que os ventos tinham mudado, as altas patentes mais próximas do Führer e sem hipótese de escaparem, tentavam entregar-se aos americanos, para evitar cair nas mãos da outra potência que mais se assemelhava à crueldade nazi – a URSS.  Chegarem vivos às mãos dos norte-americanos tornara-se no derradeiro sonho dos seguidores de Hitler, pois era a única possibilidade de serem julgados com alguma justiça e decência humana. Bem sabiam das práticas impiedosas dos soldados do Exército Vermelho, que replicavam a violência praticada pelos regimentos alemães na invasão da Rússia e do Leste Europeu. Parecia ser a hora da vingança de um país que fora selvaticamente devastado pelos exércitos do Reich.  

A cegueira soviética, no final da guerra, evidenciara-se nas violações em massa, sem pouparem ninguém, e também por desaparecimentos indecorosos e injustos como o do responsável da Cruz Vermelha em Budapeste – o diplomata sueco, filho do Conde de Wallenberg. A 17 de Janeiro de 1945, fora raptado com o seu adjunto, apenas por se ter destacado a salvar judeus, na Hungria. Nem o fim da guerra pôs termo ao incompreensível cativeiro. Raoul Wallenberg (1912-1947? ou anos 60, nas masmorras soviéticas) nunca tinha prejudicado os interesses do Kremlin e a sua única arma fora o soft power diplomático para resgatar judeus das garras das SS. Nesse âmbito revelara uma eficiência lendária, ficando conhecido pela declaração, que travava os próprios nazis: «Ich bin Wallenberg». Tamanho êxito a fazer o bem por prestígio pessoal implicava a afirmação de uma individualidade inaceitável num regime comunista, pois apenas o Estado e o líder supremo podem exibir vontade própria. Finda a guerra, o Kremlin limitou-se a negar o óbvio rapto. Décadas depois, inventou a desculpa descabida para o desaparecimento de Wallenberg, de onde nunca mais voltou vivo: suspeita de espionagem. Estaline permitia-se mentir e negar factos a seu bel-prazer, quase como demonstração de um autoritarismo sem limites. 

Foto-passe de Junho de 1944.

Apesar do ambiente de revanchismo no Day After, os Aliados ocidentais conseguiram fazer julgamentos com regras e bom senso, sem sentido castigador, para revolta de alguns segmentos mais justiceiros. Isso tornou possível que vários dirigentes nazis se livrassem da pena capital, à parte de casos mais empedernidos e com maior responsabilidade na condução da guerra e dos odiosos Campos de Concentração nazis, como foi o caso de Höss em Auschwitz, que inspirou um filme recente: («The Zone of Interest»). Porém, o horrendo sucesso da sua carreira no Partido Nacional-socialista não teve a última palavra na sua vida, que conheceu uma reviravolta benigna e imprevisível, narrado neste artigo gentilmente cedido pelo autor:     

«RUDOLF HÖSS 

O recente filme de Jonathan Glazer, estreado em Janeiro de 2024, que não vi, foi a ocasião de um amigo me falar da história do personagem central, um monstro chamado Rudolf Höss. Não confundir com o conhecido Rudolf Hess, braço direito de Hitler.

Rudolf Höss nasceu numa família católica alemã, mas cedo se tornou ateu. Na primeira Guerra Mundial começou por trabalhar num hospital militar; depois, com 14 anos, alistou-se no exército alemão; aos 15 anos combateu no Iraque, na Palestina, chegou a comandante de cavalaria, foi ferido várias vezes, recebeu altas condecorações. Nesse período, não longe dali, ocorreram o genocídio arménio e o genocídio assírio. Quando a Guerra acabou, Höss voltou à Alemanha para fazer o ensino secundário. Juntou-se ao partido nazi, foi parar à prisão por desacatos com homicídio, voltou à liberdade graças a uma amnistia.

Com a tomada de poder pelo partido nazi começou uma carreira abominável. É difícil seleccionar exemplos. Responsável pelo campo de concentração de Sachsenhausen, mandou que todos os prisioneiros que não estavam a trabalhar formassem ao ar livre, mal vestidos, num dia de Inverno, com 26 graus negativos. Quando alguém tentou levar alguns indivíduos congelados para a enfermaria, mandou fechar as portas. 78 prisioneiros morreram durante o dia e mais 67 à noite.

O cargo mais conhecido de Rudolf Höss foi o de Director do campo de concentração e de extermínio de Auschwitz. Todos os dias chegavam vários comboios com milhares de prisioneiros cada um, para serem mortos. A operação de matar foi-se aperfeiçoando e, segundo o próprio Rudolf Höss, o processo era bastante eficiente, a limitação estava na capacidade das gigantescas fornalhas que queimavam os corpos. Num primeiro cálculo, Höss afirmou que em Auschwitz mataram 2,5 milhões de pessoas e outro meio milhão morreu de fome e doença; mais tarde, pensando na capacidade das câmaras de gás, achou que 1 a 2 milhões seria mais realista que 2,5 milhões. A própria ligeireza destas apreciações é chocante.

Rudolf Höss, na fila da frente do lado direito, numa visita de Heinrich Himmler
ao campo de extermínio de Auschwitz em 1942.

O relatório do psicólogo que examinou Höss na altura do julgamento expressa a que ponto chegou a depravação: «Höss é perfeitamente objectivo e neutro, (…) tem demasiada apatia para se pensar que tenha algum remorso e até a hipótese de vir a ser enforcado não parece incomodá-lo. Fica-se com a impressão de um homem intelectualmente normal, mas com a apatia esquizóide, a insensibilidade e falta de empatia que dificilmente se encontrariam num caso de psicose propriamente dita».

O elemento que mudou uma personalidade tão horrorosa foi a bondade com que os carcereiros polacos o trataram. Höss esperava vingança e, afinal… Numa mensagem ao advogado de acusação escreveu:

«A consciência obriga-me a esta declaração. Na solidão da minha cela, acabei por reconhecer amargamente que pequei gravissimamente contra a humanidade. (…) Fui responsável por parte dos planos cruéis de destruição humana. Infligi feridas terríveis à humanidade. Causei um sofrimento indescritível sobretudo ao povo polaco. (…) Que Deus me perdoe o que eu fiz. Peço desculpa ao povo polaco. Nas prisões polacas experimentei pela primeira vez o que é a bondade humana. Apesar de tudo o que aconteceu, trataram-me com uma simpatia que eu nunca poderia esperar, o que me envergonha profundamente. Que a actual divulgação destes horríveis crimes contra a humanidade faça com que seja impossível estes actos cruéis repetirem-se algum vez».

Poucos dias antes do enforcamento, Höss converteu-se. O padre Władysław Lohn confessou-o e no dia seguinte foi dar-lhe a Comunhão.

Em carta de despedida à mulher, Höss escreveu:
«(…) Vejo hoje claramente, de forma muito dura e amarga para mim, que toda a ideologia em que eu acreditava tão firme e inabalavelmente se baseava em premissas completamente erradas e tinha de se desmoronar absolutamente um dia. (… ) As minhas acções ao serviço desta ideologia estavam completamente erradas, (…) o meu afastamento de Deus baseava-se em premissas completamente erradas. Foi uma luta difícil. Mas voltei a encontrar a fé no meu Deus».

Despediu-se de um dos filhos, escrevendo:
«Mantém o teu coração bom. Deixa-te guiar principalmente pela ternura e por sentimentos humanos. Aprende a pensar e a julgar por ti próprio, de forma responsável. (…) O maior erro da minha vida foi acreditar caninamente em tudo o que vinha de cima, sem ousar a menor dúvida. (…) Em tudo o que fizeres, não te guies apenas pela inteligência, escuta sobretudo a voz que fala no coração».

Neste mundo, ferido novamente por guerras dolorosas e insensatas, fez-me bem conhecer este exemplo de como os gestos de bondade realizam curas maravilhosas.»


José Maria C.S. André – publicado a 5-V-2024 
em media anglo-portugueses

Boas leituras e bons filmes calham maravilhosamente em tempo de férias e descanso.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

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