Fez ontem um ano que morreu o JdC e, na altura, escrevi o que me veio à alma, e que pode ser (re)lido aqui. Na 3ªfeira, a almoçar com o meu querido amigo fq, lembrámo-lo brevemente.
Não me é difícil fugir ao lugar-comum do ai que impressão, já lá vai um ano... Talvez me atire a outro lugar que me é comum: cumprir-se-iam, este ano, 53 anos de uma amizade muito próxima, o que não significa uma amizade toda perfeita. Para trás ficam décadas de convívio, de partilha, de confidências, de alguns afastamentos, de muito divertimento ou militância política, de alguma discordância que nunca raiou a discórdia.
Em algumas áreas da minha vida sou mais homem de lamentar o passado que (não) foi, do que desejar o futuro que pode ser. Inclino-me mais para olhar para trás do que para a frente - uma atitude realista, até porque o ontem existiu, o amanhã não se sabe se virá. Devido ao desaparecimento dos dois padres com quem costumava conversar / confessar-me (um para o Céu, outro de regresso às ilhas) dei por mim sem orientação espiritual. Podia ir procurar outra pessoa? Como diz o anúncio, sim, podia; mas não seria a mesma coisa... O que me falta? Tempo útil. Falta-me kairos, porque chronos tenho sempre. Estou falho de paciência para contar a minha vida a alguém que me conheceu ontem.
De alguma forma isto acontece com as amizades. Tenho bons amigos, a quem falo e de quem oiço. Tenho bons amigos que me confidenciam coisas, e a quem eu confidencio coisas, que sabem muito de mim e eu deles. Mas o JdC (e, de certa forma, o fq) conheciam quem eu fui e a minha circunstância. Eram pessoas lá de casa, como se dizia, e que percebiam o contexto de muitos acontecimentos. A pessoas novas na minha vida já não tenho tempo de qualidade / kairos para falar da infância, do impacto da educação, dos setembros da minha juventude, das minhas cicatrizes ou da minha genealogia, de pessoas que já cá não estão ou, estando, também não estão. Em bom rigor, também já nem quero maçar ninguém com informações que só para mim são relevantes, porque me constituem.
O JdC faz-me falta: para coisas tão simples como a identificação de um embaixador, ou para coisas tão pessoais como a escuta de um lamento ou de uma recomendação. Nalguns casos, e para alguns episódios, só ele era conhecedor de eventos passados, só ele poderia, com uma propriedade total, alvitrar que eu fizesse isto ou aquilo, que seguisse este ou aquele caminho. E ouvi-o sempre, mesmo que nem sempre concordasse. E ouvi-o sempre, porque lhe reconhecia competência suficiente para merecer ser ouvido. Uma competência que não lhe advinha da experiência própria, forçosamente, mas da motivação.
Gosto sempre de pensar no que desaparece quando me desaparecem os mais próximos, o que morre com quem morre: pode ser uma ideia de amor incondicional, de memória ou de afecto. No caso dele a resposta é simples: independentemente de outras coisas, nomeadamente um passado muito comum, desaparece a interlocução. Para pessoas como eu, é desaparecer muito.
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A Igreja lembrou ontem Santo Agostinho de Hipona, bispo e doutor da Igreja. Não resisto a transcrever uma parte do seu livro Confissões.
Tarde Vos amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Vós estáveis dentro de mim, mas eu estava fora, e fora de mim Vos procurava; com o meu espírito deformado, precipitava me sobre as coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e dissipastes a minha cegueira. Exalastes sobre mim o vosso perfume: aspirei o profundamente, e agora suspiro por Vós. Saboreei Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes me e agora desejo ardentemente a vossa paz.
As frases tarde vos amei e fora de mim vos procurava podem ser lidas como uma boa metáfora para outras partes da nossa vida. Por vezes vamos tarde para qualquer coisa, porque procuramos a solução fora do sítio correcto.
JdB
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