Foi hoje, mas há 23 anos.
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Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico).
À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto.
Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou.
Há 9 anos, aquando da morte injusta do Pe. Ricardo, com pouco mais de 40 anos, escrevi o seguinte: não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto...
Por essa altura eu lia A Peste, de Camus, e sentia bem fundo a passagem seguinte: [o] padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Conforta-me um padre que nada sabe, porque só os sábios têm dúvidas.
Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja.
J, em nome de todos os que te lembram.