As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
29 novembro 2024
28 novembro 2024
Da nostalgia dos primeiros beijos *
O video acima - cujo descrição sucinta é we asked twenty strangers to kiss for the first time - corre na internet e tem, de há três semanas para cá, mais de setenta milhões de visualizações. Confesso que não sei porquê, embora eu seja uma das pessoas que engrossa a estatística. Apanhei o video num blogue qualquer e vi-o uma vez, que para mais não se justifica.
Revivi o meu primeiro beijo. Detentor de uma boa memória, lembro-me com quem foi, para além da hora e do local. Lembro-me até do outro par ao lado, envolvido em actividade semelhante, à distância do silvo de um comboio. Recordo a arrebatação, o sentimento de êxtase pela espinha abaixo, a ideia de algo proibido, aventuroso como só o miguel strogoff. Também lembro, porque sou detentor de uma boa memória, o desinteresse estético da minha namorada de então, uma colega de liceu pequena, que não vejo há mais de quatro décadas e que não reconheceria na rua.
Usemos a ideia de primeiros beijos como uma metáfora. O que me atrai neste conceito que revisito com uma frequência que exaspera os mais pacientes? Porque falo tanto nestas épocas da minha vida - a do verdadeiro primeiro beijo e dos anos seguintes? É a procura da simplicidade de que falava na semana passada? É a lembrança de uma emoção, de um sentimento, de um frémito que os tempos e o feitio feriram de morte? É a ideia de uma vida cuja única preocupação, como me escreveu um amigo, era saber o que faríamos nessa noite?
Sábado passado disseram-me: já sei que eras amigo do JCS. Confirmei e recuei quarenta anos, revendo a irmã dele por quem me interessei afectivamente. Não tenho saudades dela, mas da ideia dela e do tempo dela. Não tenho saudades desta colega a cujos lábios encostei os meus numa ingenuidade desajeitada. Mas retive pormenores, significado de uma importância interior. Talvez eu seja um nostálgico obsessivo, não fixado especificamente nas pessoas, mas nos tempos, nas emoções, no entusiasmo inexplicável de sentir que uma rapariga me guardava os cigarros, como se fosse guardiã de um tesouro que pertencia a ambos.
Já sei que eras amigo do JCS. Sim, fui amigo dele num tempo de algarve, de cartas manuscritas, de noites longas nos terraços, de verdades e consequências reveladas com uma cara que corava, um coração que pulava, uns olhos que fugiam do que o amor já fixara; sim, fui amigo dele num tempo de músicas dançadas na quietude de temperaturas amenas, com a cara encostada a uma rapariga que não se mexia, cujos cabelos cheiravam a timotei ou a fragrâncias compradas em badajoz. Sim, fui amigo dele num tempo de quer dançar comigo? e de obrigado, de mãos dadas escondidas, de olhares furtivos e abraços dançantes, de corpos juntos e almas presas. Sim fui amigo dele num tempo de primeiros beijos.
JdB
27 novembro 2024
Poemas dos dias que correm
Amar uma pedra, um cão, uma osga, uma barata.
Amar uma pessoa que não gosta de nós.Amar uma pessoa de quem não gostamos.
O amor é mais difícil que a mecânica quântica.
Fernando Pessoa, num poema em que caridade rima
com electricidade, diz que não tem caridade.
Às vezes, aquilo a que chamamos amor não é amor:
- é exigir amor em troca
- é dar para que dês
Amar alguém é confiar nessa pessoa, não estar de pé atrás, acreditar nessa pessoa. Gostamos pouco uns dos outros, disse Tonino Guerra.
Querer amar e ser amado, dizia Jorge Luis Borges, é muito ambicioso, não é humilde.
Acho que devemos pedir só para amar.
É fácil amar quando a vida nos corre bem.
Quando a vida nos corre mal, insultamos o mundo e, às vezes, insultamos Deus. Acreditar então nas coisas mais queridas, mais pequeninas:
- as medalhinhas do nosso Baptismo, que entretanto foram roubadas, se perderam.
- a imagem de Nossa Senhora de Fátima comprada na loja dos 300.
- dois versos de uma oração de que esquecemos o resto.
Às vezes, a vida corre-nos muito bem e esquecemo-nos da compaixão. A compaixão é o amor. Só a compaixão salva. Só a compaixão é eterna.
O sofrimento nem sempre se vê. E o sucesso, como o desespero, pode cegar.
Às vezes, temos grandes amigos e não sabemos. A padeira do nosso bairro, o vizinho do nosso prédio. Anos e anos a dizer:”Bom-dia! Boa-tarde!, mais nada, e essas palavras bastaram.
O amor nem precisa de palavras. Mas as palavras sabem bem.
Adília Lopes
26 novembro 2024
Da redenção *
Abílio entrou na Fábrica A Ilusão das Beiras pelo início da manhã de uma segunda-feira chuvosa, fria e escura. É um homem magro, alto, que mais parece um ramo de salgueiro que se partirá à menor ventania. Tem umas olheiras fundas e um cabelo grisalho muito ralo, penteado para o lado. Aparenta ter 60 anos, mas talvez ande no meio dos 40, embora gastos.
Passados um ano a trabalhar como mecânico, estabeleceu um primeiro contacto social com a Deolinda, uma rapariga de 32 anos, morena, com uma beleza pouco óbvia, uns olhos ligeiramente assimétricos e uma cicatriz grande num braço. Deolinda sentiu-lhe a perturbação no olhar, quase como se a realidade lhe fosse algo difícil de suportar – uma luz demasiado intensa, um frio desagradável, um calor de derreter. Ou talvez, e apenas, um desajuste imperceptível com o mundo em seu redor.
Deolinda é uma minhota que, aos 22 anos, vai a meio de um curso de enfermagem em regime pós-laboral, ao qual se entrega como quem presta um serviço humanitário por vocação. É uma rapariga dócil, simpática, atenciosa. Abílio convidou-a para jantar e dançar, e baixou os olhos antes de ela lhe dizer sim, com muito gosto, com se tivesse medo de enfrentar algumas pessoas, ou como se tivesse medo de ver a vida de frente. No fim de uma noite agradável e calorosa, promissora de mais qualquer coisa, o par seguiu para o apartamento de Deolinda, onde, durante a hora seguinte, se entregariam ao prazer, à sensualidade, à exploração dos corpos. Talvez mesmo ao carinho, à atenção e à companhia, afectos cuja raridade prejudica tanta gente.
Abílio despiu-se revelando algum pudor e, estranhamente, algum incómodo pela nudez simples, descomplexada e levemente clara da Laura, fixando os seus olhos com mais intensidade numa borboleta tatuada onde ele suporia a marca de uma qualquer apendicite.
Foi sempre com algum embaraço que, deitado na cama e com um lençol por cima, se foi confrontando com o corpo da rapariga - uns seios pequenos e levemente levantados, umas nádegas bem feitas e descaídas ao limite da estética, umas pernas magras mas elegantes, um ventre liso e sem vestígios de gorduras. Deolinda foi carinhosa, disponível, amável, atenciosa.
- O que te apetece, Abílio? Ainda estás em boa forma física! Gosto muito que me acaricies. Preferes a luz acesa?
Abílio, um homem que estará na recta final dos 40, com olheiras fundas e cabelo grisalho ralo, fez amor com ela usando o cuidado de quem toca um cristal finíssimo, evidenciando a suavidade com que um alfaiate profissional e competente ajeita uma peca de tecido que cortará ao gosto do cliente, revelando a prudência de um explorador que se aventura, cauteloso, por terras que lhe são estranhas.
No fim murmurou-lhe um pedido
- abraça-me...
naquele tom de voz que revela desejo, mas pouco à-vontade devido a desabituação, e chorou como uma criança, ou talvez como uma barragem que rebenta por não aguentar mais a pressão a montante.
Levantou-se e vestiu-se, enquanto Deolinda, na cama, fumava um cigarro, surpreendida com o choro súbito, vagamente apreensiva com um exame na semana seguinte. Afastou os lençóis para que Abílio a mirasse de novo, sem que naquele olhar houvesse uma luxúria para além do saudável, mas apenas um motivo para ouvir a frase:
- És linda, Deolinda! Linda.
Depois, em pé, pronto para sair, virou-se para trás e disse:
- Saí o ano passada da cadeia onde cumpri uma pena de quase 25 anos pela morte de duas raparigas, morenas, altas e com 22 anos. Foi um impulso, uma raiva, sei lá o quê. Consideraram que já não seria um perigo para a sociedade, mas tinha que ser eu, acima de tudo, a perceber a minha cura, a estar certo de que sou inofensivo. Tu foste a prova, e sei que nunca mais quererás ver-me. Obrigado por tudo.
O ex-presidiário não teve tempo – ou talvez não tenha querido ter a oportunidade - de perceber o olhar angustiado de Deolinda, a estudante que terá de saber perfurar uma veia com uma agulha, ou estender com mestria os instrumentos a um cirurgião.
Abílio revelou um olhar diferente para a cicatriz de Deolinda, como se a realidade fosse algo a que se começasse a habituar. É possível que ela lhe tenha vislumbrado um sorriso envergonhado, não sei. Se calhar apenas o esboço, um ensaio, uma preparação. Na rádio, uma artista da moda cantava o seu último êxito, no qual o refrão mencionava diversas vezes a palavra redenção. Talvez Deolinda tenha também sorrido...
JdB
* baseado numa história já antiga
25 novembro 2024
Poemas dos dias que correm
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles o meio termo, ou qualquer termo,
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
24 novembro 2024
Solenidade de Cristo, Rei do Universo
EVANGELHO – João 18,33b-37
Naquele tempo,
disse Pilatos a Jesus:
«Tu és o Rei dos judeus?»
Jesus respondeu-lhe:
«É por ti que o dizes,
ou foram outros que to disseram de Mim?»
Disse-Lhe Pilatos:
«Porventura eu sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a mim.
Que fizeste?»
Jesus respondeu:
«O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam
para que Eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu reino não é daqui».
Disse-Lhe Pilatos:
«Então, Tu és Rei?»
Jesus respondeu-lhe:
«É como dizes: sou Rei.
Para isso nasci e vim ao mundo,
a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».
22 novembro 2024
Duas Últimas
Stacey Kent fala em insensibilidade ou em indiferença. Roberta Sá fala em insensatez. Escolham a versão que quiserem de uma belíssima música, muito bem cantada em ambas as versões.
JdB
21 novembro 2024
Poemas (inteligentemente artificiais) dos dias que correm
No início desta semana, para compor o texto sobre solidão que postei na 3ªfeira, pedi ao ChatGPT o seguinte: poema que fale de solidão de um poeta português. Em menos de 10 segundos o "sistema" apresentou-me isto:
(Inspirado pela alma portuguesa)
Caminho só, num fado que me chama.
A lua, confidente que me empreste
O brilho pálido que o peito reclama.
Versos moldados por silêncios frios.
Companheiros, são as horas tardias,
E o vento que sopra nos montes sombrios.
Perdi-me em palavras, perdi-me em mim.
Um poeta sem rima que só se torce,
Num cais deserto, sem barco, sem fim.
Onde meu ser, despido, se revela.
Sou mar bravio, sou astro sem brilho,
Mas também sou alma, e isso me impele.
És musa e dor, veneno e guarida.
E acrescentou: este poema reflete a melancolia e introspecção tão presentes na obra de muitos poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Que achou? Quando lhe perguntei quem era o autor, informou-me: o poema que escrevi é original e inspirado no estilo melancólico de grandes poetas portugueses, como Fernando Pessoa e Florbela Espanca, mas não pertence a nenhum autor específico: fui eu quem o compôs para você.
Olho para o poema: se excluirmos as rimas doce / torce ou espelho / brilho, o poema não envergonha ninguém, e tem um verso particularmente criativo: O brilho pálido que o peito reclama. Se tirarmos o brasileirismo do tratamento por você, o diálogo que mantém comigo é impressionante. Tudo isto demorou nem um minuto. Onde é que vamos parar?
JdB
20 novembro 2024
Vai um gin do Peter’s ?
EM CONTAGEM DECRESCENTE PARA O NATAL
A agilidade do marketing para compor mensagens lapidares parece aguçar-se na aproximação ao Natal ou face a acontecimentos especialmente impactantes em determinado país ou mesmo no mundo. Vimos o IKEA no seu melhor durante a campanha eleitoral das últimas legislativas nacionais, com cartazes à Monty Python, de que lembro alguns, só descodificáveis para os eleitores nacionais, em modo private joke certeira:
Surfando a onda de sucesso do IKEA, outras marcas criaram cartazes cheios de humor, uns também com farpas políticas directas (um inédito em Portugal), outros mais despolitizados, como preferiu a FNAC. Curiosamente, uns escassos 9 meses sobre as legislativas de 10 de Março de 2024 e só em pesca à linha (em blogs e no Facebook) ainda resistem na net exemplos dessa exuberância publicitária dos primeiros meses deste ano. Isto corresponde a um apagão informativo clamoroso do passado recente na google, cuja maioria das pesquisas apenas dá acesso a links institucionais (CNE e afins, com instruções sobre os locais de voto e infantilizações equivalentes) e, em matéria de cartazes restringe-se aos dos Partidos com assento na A.R., sendo os mais visíveis no google os do Bloco de Esquerda. Estranhos tempos de suposta liberdade democrática e de apregoado pluralismo de todos os quadrantes, mas com descarada redução do património histórico a um par de vestígios higienizados. Se isto não é cancelamento... Aqui vão exemplos de cartazes divertidos, em diálogo uns com os outros, caçados com enorme esforço, pelo que convém revê-los e guardá-los como documentos históricos expressivos de uma ousadia democrática desempoeirada, que deu os primeiros passos uns meses antes de cumprirmos meio século sobre o 25 de Abril:
Mais 3 empresas entram no diálogo publicitário disparado pelo IKEA, com a famosa estante onde se esconderam milhares de euros no escritório do Chefe do Gabinete do PM de então (Nov.2023), em S.Bento. |
O outdoor da SUN esteve exposto ao lado da sede do PS, no Largo do Rato. |
Em 2018, o IKEA esmerou-se na sua missiva de Natal (ao invés deste ano, que lançou um meramente mercantilista) com uma curta-metragem interpelativa, dirigida sobretudo aos países hispânicos. Aproveita o clima afectivo da quadra para arriscar um alerta forte sem o efeito colateral de “murro no estômago”. Porque há verdades que doem, mais ainda quando se adentram na vida rica, mas cheia de claro-escuros, de tantas famílias. Partindo da matriz familiar do Sul da Europa e das sociedades latino-americanas, onde se juntam várias gerações à mesma mesa, denuncia-se a grande ilusão que podem ser as redes sociais, na miragem de estarmos mais interconectados com os outros, mas afinal menos disponíveis para os que estão ao lado. O tempo não estica para tudo: ou imagens de pessoas no ecrã ou gente de carne-e-osso.
Convenhamos que muita cusquice se alimenta nas redes sociais, que devassam sem conseguir aproximar-nos de quem surge nos telemóveis ou nos tablets! Se dúvidas houvesse, confirma-se quanto o principal se joga nas escolhas do nosso coração e bem menos nas proezas tecnológicas ao nosso alcance. Vivemos mergulhados na superabundância de recursos (pelo menos, no Ocidente), o que exige saber escolher, deixar opções para trás, cientes do perigo de tentar ir a tudo e acabar em overdose. Bem sabemos que não é a mesa a transbordar de comida que engorda e dá cabo da saúde, mas o que realmente consumimos. Mais critérios e filtros afinados tornam-se incontornáveis para tirarmos o melhor partido do que está à mão de semear, mas requer moderação para evitar excessos viciantes e, a prazo, degradantes.
Claro que a validade de algumas perguntas na curta-metragem do IKEA poderá ser questionável, porque desconhecermos a cor preferida de alguém próximo não significa, necessariamente, desinteresse e frieza. Mas, sem nos atermos ao pormenor de cada interpelação, a ideia central merece ser levada a sério e repensada, no final do dia. Poderá servir de bússola para aprofundarmos e enriquecermos a relação com os outros, começando pelos mais chegados. Dizia um amigo meu, na altura pai de filhos pequenos, que uns vizinhos se preocupavam muito com os filhos, mas ocupavam-se bem pouco deles… Aplica-se, na perfeição, ao leit motiv do spot publicitário da marca sueca, observado pelo ângulo mais positivo e verdadeiro: «Everyday, we have the chance to know more about the people around us»:
19 novembro 2024
Da solidão
Dubai, Junho de 2024 |
Eu sou uma fazedora. E não imagino como vai ser quando deixar de poder fazer.
Não cito a frase verbatim, mas o espírito é este. Oiço-a de uma querida amiga com quem almocei a semana passada numa esplanada de bairro. O dia está simpático e alongamo-nos na conversa: as vidas de algumas pessoas que nos estão mais próximas, as nossas próprias vidas, o futuro possível, os projectos para os dias que estão para chegar. Falamos de solidão: dos que a têm e reconhecem, dos que a não têm, dos que dizem que a não têm, do que significa, na verdade, solidão.
Para esta minha amiga, a angústia (a palavra é minha) está no já não poder fazer. Para o meu Pai, que se manteve totalmente lúcido até à antevéspera de morrer, aos 94 anos, o desânimo instalou-se no momento em que perdeu a autonomia, quando deixou de poder apanhar transportes públicos para ir onde quisesse. Para um amigo mais recente, a tristeza está na sua viuvez de meses, na casa onde entra todos os dias e já não encontra ninguém. Para outros, a infelicidade está na ausência de alguém com quem partilhar uma vida ou, numa visão mais modesta, os dias excessivamente longos.
Um dicionário online diz-nos que solidão é estado do que está só, isolamento. Nunca como hoje se falou tanto de solidão - e ainda bem. Fala-se da solidão dos velhos, abandonados à sua sorte pelo egoísmo ou dificuldades dos mais novos; fala-se da solidão das gerações modernas, jovens enfiados na penumbra dos quartos a comunicarem de forma virtual. Fala-se na enorme solidão de um mundo conectado como nunca. Já o Eça, falando de viagens à Condessa de Ficalho, mencionava a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas, uma certa forma de solidão de quem se sente rodeado de pessoas que não falam a sua língua (e esta expressão língua deve usar-se de modo metafórico).
Talvez o mal dos tempos modernos não seja a solidão, stricto sensu, mas uma espécie de tristeza que advém da falta de algo. Nada me garante que quem vive sozinho tenha solidão e nada me garante que quem vive sempre em agitação não a tenha. Talvez não devamos falar de solidão, mas de privação ou carência que assumem diversas formas. Ou talvez devêssemos chamar solidão a tudo isto: à perda de actividade profissional ou de autonomia por via da obsolescência ou da velhice, às saudades de alguém importante que morreu, à vida numa casa grande demais porque o telefone não toca. Também poderá ser solidão - neste definição forçosamente ampla a que me atiro - uma vida sonora que não permite, ou que propositadamente evita, a escuta de uma voz interior.
A conversa com esta minha amiga começou com uma pergunta importante lançada para a mesa: vamos lá definir o que é isso de solidão.
JdB
18 novembro 2024
Textos dos dias que correm *
Esperança integral
Ver notícias, ler jornais e conhecer realidades mais ou menos próximas de nós é muitas vezes um exercício de desesperança. As assimetrias multiplicam-se em inúmeros contextos, há uma crescente sensação de insegurança, a polarização instalada vai semeando um clima de discórdia (aparentemente) insanável e fomenta-se a ideia de que os consensos, as realidades co-construídas, e a cooperação, são cada vez mais uma miragem, e nem temos tempo para analisar e assimilar este turbilhão de informação.
Que mundo estamos a construir? O que queremos transmitir aos que virão depois de nós? Que cultura estamos a deixar às crianças que já habitam este mundo?
As interrogações sobre o que acontece no mundo são muitas e as sucessivas crises económicas, sociais e ambientais do nosso tempo alimentam talvez a maior crise do mundo contemporâneo – a crise da esperança.
Estando em crise, é prioritário resgatá-la. E o mote para esse resgate foi lançado pelo Papa Francisco, em 2022, quando definiu para o ano de Jubileu de 2025 o lema “Peregrinos de esperança”.
Mas que esperança queremos (e precisamos) de resgatar? Não falamos da esperança ligeira, fácil, quase infantil, assente na premissa de que tudo ficará “bem” de forma imediata, com concretizações abstratas. É-nos mesmo quase insuportável, olhando e escutando para a realidade, o discurso de uma esperança express, ou on demand.
A esperança que cremos que o mundo precisa de resgatar é uma esperança humilde, silenciosa e esclarecida, capaz de aceitar o momento de desesperança presente, mas que, tal como um peregrino, se compromete com o destino, caminha e aceita que a dificuldade e o sofrimento farão parte do processo. É também paciente, confronta-nos com a nossa vulnerabilidade e apresenta-nos a fragilidade dos outros.
Como disse Tolentino, “S. Paulo é um oportuno mestre da esperança”. E as suas cartas são expressão de uma espera encarnada que me têm servido como guia (ou mesmo manual técnico) para este resgate do verdadeiro sentido da esperança que tenho tentado concretizar e que acredito que precisamos de fomentar. S. Paulo projeta a esperança em Deus, no futuro, na salvação que virá, mas anima-a no presente, no quotidiano, na fidelidade ao ordinário da vida e dá-nos pistas muito concretas de como podemos agir e amadurecer o nosso sentido da esperança.
Este realismo da espera no presente, que necessita de todos os sentidos despertos, remete-nos para a ideia de integralidade, e que é a chave para as respostas que precisamos para os desafios do nosso tempo. Olhar a realidade como um todo e para os desafios de forma concertada é o ponto de partida para uma sociedade mais justa social, económica e ambientalmente.
A “esperança integral” tem tradução num amor “que tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta”, e pode ser traduzida na paz, na oração, na alegria, nas relações familiares, na vida laboral, nos mercados, nas políticas públicas. E que perante a dureza das situações nos vai abrindo uma porta de possibilidades escondidas que o turvo da desesperança não nos permitia observar.
E é esta a semente que gostava de lançar para o tempo do Ano Santo que estamos prestes a iniciar – descobrir e alimentar uma esperança esclarecida, madura, que olhando de forma integral para a realidade abre caminhos para novos entendimentos e novas perspetivas (mais criativas) para dar resposta aos desafios do nosso tempo.
Em 2025, celebraremos também os 10 anos da encíclica Laudato Si’ e os 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, dois sinais de esperança em dois momentos históricos distintos. Que este tempo seja uma oportunidade de redescoberta da esperança como dom do Espírito, que é difícil de reconhecer na adversidade, mas que é o que nos conforta e garante.
* Publicado no Ponto SJ, o portal dos jesuítas em Portugal (https://pontosj.pt/opiniao/esperanca-integral/)
17 novembro 2024
XXXIII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO – Marcos 13,24-32
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Naqueles dias, depois de uma grande aflição,
o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade;
as estrelas cairão do céu
e as forças que há nos céus serão abaladas.
Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens,
com grande poder e glória.
Ele mandará os Anjos,
para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais,
da extremidade da terra à extremidade do céu.
Aprendei a parábola da figueira:
quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas,
sabeis que o Verão está próximo.
Assim também, quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta.
Em verdade vos digo:
Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Passará o céu e a terra,
mas as minhas palavras não passarão.
Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece:
nem os Anjos do Céu, nem o Filho;
só o Pai».
15 novembro 2024
Do que se fotografa *
Retomo, em tempos de pandemia e quarentena, a leitura de Imagens Imaginadas, de Pedro Mexia (Tinta da China, 2019). Em Momentos Kodak (pg. 100) é citada Nancy Martha West, autora de Kodak and the Lens of Nostalgia (2000):
"As pessoas que tiram fotografias rápidas usam a fotografia como forma de evitar, e até de negar, as memórias dolorosas, nomeadamente a memória da morte de uma pessoa amada. Tiram quase exclusivamente fotos de momentos felizes, e usam essas fotos como modo de reconstruir a sua história através da narrativa de prazeres e afectos 'intemporais', tentando assim consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, e no qual nos lembramos de momentos em que de algum modo escapámos ao sofrimento e à perda."
Calhou começar a dedicar-me à fotografia de uma forma totalmente amadora (por oposição a experiente, e não a profissional) quando os meus filhos eram crianças. Apesar de haver muitas fotografias banais, de momentos familiares - na praia, numa festa, em férias - o meu prazer consistia em fotografar-lhes os rostos de perto, (quase) sempre com chapéus de adultos, como se transpusesse para eles um gosto (que eles não tinham) e que eu não conseguia satisfazer. Era um tempo, ainda, de felicidade, manchado apenas por trivialidades - um dente partido, uma amigdalite, um febrão extemporâneo. Também nesse tempo, e no decurso de viagens, fotografei muitas paisagens - fotografias normalmente desinteressante, para não dizer más. Não há uma originalidade, um pormenor, uma perspectiva. Tudo, ou quase tudo, poderia ser substituído sem mágoa por postais ilustrados.
Deixei de fotografar rostos há muito tempo: os meus filhos cresceram, e a dimensão de lazer - ou desejo de registo para memória futura - já não faz sentido. As crianças já são outras, são os filhos deles, que eles fotografarão como entenderem, com ou sem chapéu, provavelmente de telemóvel. Continuei, contudo, a dedicar-me à fotografia sempre na dimensão amadora isto é, inexperiente. Como penso já ter dito aqui neste estabelecimento, o meu prazer fotográfico vai agora maioritariamente para os ambientes urbanos: o reflexo de um prédio espelhado, a perspectiva de um claustro, uma assimetria - ou talvez uma simetria - a nota dissonante de um gordo em frente a um ginásio ou de uma anoréctica numa montra pejada de éclairs. Paisagens também, com outra qualidade, confesso.
Será que Nancy Martha West tem alguma explicação para esta mudança, ou encolheria os ombros, como se faz perante uma banalidade que não merece atenção? Talvez, segundo ela, eu tenha tentado reconstruir a minha história, desejando consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, o que claramente não consegui, ainda que por motivos extemporâneos. Agora procuro olhares sobre a urbe, já não sobre as pessoas, forçosamente transitórias. Talvez seja o desalento, talvez seja um desejo de fixar espaços que são, pelas circunstâncias, mais perenes. Ou talvez não seja nada disso, o que é mais provável.
JdB
* publicado originalmente a 16 de Março de 2020
14 novembro 2024
13 novembro 2024
Textos dos dias que correm
A Mentira é a Base da Civilização Moderna
É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão parecer-se-à com a fome de luz?...
Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"
12 novembro 2024
Poemas dos dias que correm
Paredão do Estoril, ontem pelas 7.30h da manhã |
está tudo desfeito, tudo por fazer,
Nasci. Passei por muitas mortes.
E agora tenho de viver.
Viver como quem inventa a vida verdadeira
e a dá ao mundo, assim uma coisa do mundo.
Quero nascer de novo e saber como é que se faz
o ofício de homem com o sentido em si
e com um amor largo no próprio ofício,
quero saber como é o trabalho de estar vivo.
Tenho de inventar a minha vida verdadeira
como quem inventa uma casa para se habitar
num espaço deserto, num mundo perdido.
Herberto Helder, in Do Mundo (1994)
11 novembro 2024
Da curiosidade e do conhecimento
Sou uma pessoa muito curiosa...
Esta frase, que todos já ouvimos muitas vezes, leva-me sempre a fazer uma pergunta a mim próprio: para que serve a curiosidade? Durante muito tempo alimentei uma convicção de que não pretendo abdicar, nem mesmo tendo ouvido gente culta a tentar-me convencer do contrário. Em bom rigor a tese não é minha, não me atiro tanto para fora de pé... A tese é a de que o conhecimento faz - ou pode fazer - de nós pessoas melhores. Isto é, há uma certa relação directa entre o que sabemos e a tolerância.
Há muitas formas de sermos boas pessoas: sendo bons chefes, bons vizinhos, bons Pais, bons cônjuges, bons amigos. O exercício das virtudes junto dos nossos mais próximos é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para sermos melhores pessoas. Ora, a nossa humanidade pode provir de inúmeras fontes: da Igreja para quem for crente, da educação recebida em casa, do ambiente em que se cresce, da escola ou da rede social / familiar. Há, no entanto, uma fonte que muito contribui para a tolerância.
A Enciclopédia Católica Popular ensina-nos o que também pode ser a tolerância: [o] respeito pela liberdade e dignidade do próximo, procurando compreender o que há de verdade nas suas diferentes formas de pensar e de agir, nomeadamente através do diálogo. Este respeito, esta procura da compreensão da verdade do outro, não se constrói apenas em cima do conhecimento, mas assenta - e muito no conhecimento. Não falo apenas do conhecimento académico, mas do conhecimento adquirido através do contacto com os outros, com a diferença de culturas, de geografias, de modos de vida.
O conhecimento pode não ser mais do que um número de circo, a exibição de uma característica, como escrever-se com as duas mãos em simultâneo ou saber dizer as palavras ao contrário numa fracção de segundos. Na sua vertente mais fútil, o conhecimento é apenas o exercício de uma memória: sei muito porque me lembro de muito; e lembro-me de muito porque tenho uma memória muito boa.
Ser-se uma pessoa muito curiosa pode não ser mais do que ser-se uma pessoa muito curiosa. O importante perguntar é o que se faz com essa curiosidade. Um dia expliquei a uma amiga chilena quem era Sto. Ireneu - e esse personagem tornou-se uma private joke nossa. Perguntava-me ela muitas vezes: para que me interessa saber quem era Sto. Ireneu? E eu respondia-lhe: imagina que estás um dia com uma pessoa chamada Ireneu. Num instante podes falar-lhe de quem era o bispo e doutor da Igreja Católica. E assim se quebra um gelo...
Identificar Sto. Ireneu encaixa-se na ideia da curiosidade. Sabe-se quem ele era porque se fixou quem ele era. No minuto em que se faz alguma coisa com a ideia - nem que seja, na sua versão mais infantil, pôr uma pessoa a rir - essa curiosidade tornou-se conhecimento. O conhecimento é a curiosidade em movimento, é o estabelecimento de um qualquer comércio humano. Ser-se curioso para consumo próprio é a gula sem o prazer sensorial - serve para quê?
JdB
10 novembro 2024
XXXII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO – Marcos 12,38-44
Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,
08 novembro 2024
07 novembro 2024
Poemas dos dias que correm *
Honolulu, Waikiki, Outubro de 2024 |
We will replace lost lovers
perdidos na adolescência, na praia,
na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,
vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,
vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,
vou deixar doer até a dor desaparecer,
morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,
vou visitar velhos amantes,
jóias sem par, de pôr e tirar,
brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,
camas onde tenho sempre lugar,
corpos que me protegem em concha,
bocas que beijam os meus defeitos,
vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,
e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,
a quem vou, uma vez mais, chamar amor
e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,
como um dia amei os meus amores perdidos.
06 novembro 2024
Vai um gin do Peter’s ?
COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO
A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países.
As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional.
Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade.
As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.
Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois.
Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas.
Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.
Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana. Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país:
Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952 |
EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER
«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.
Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…
Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila.
Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke |
Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.
Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!
Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.
Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”
Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.
De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
05 novembro 2024
04 novembro 2024
Carta a um anjo
Foi hoje, mas há 23 anos.
***
Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico).
À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto.
Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou.
Há 9 anos, aquando da morte injusta do Pe. Ricardo, com pouco mais de 40 anos, escrevi o seguinte: não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto...
Por essa altura eu lia A Peste, de Camus, e sentia bem fundo a passagem seguinte: [o] padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Conforta-me um padre que nada sabe, porque só os sábios têm dúvidas.
Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja.
J, em nome de todos os que te lembram.
03 novembro 2024
XXXI Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO – Marcos 12,28-34
Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?»
Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
‘Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’.
O segundo é este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além d’Ele.
Amá-l’O com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças,
e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente,
Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-I’O.
01 novembro 2024
Solenidade de todos os Santos
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n'O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
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