Talvez a farda do dia-a-dia – uma camisa branca, umas calças azuis escuras e uma gravata com o logótipo da empresa - fosse, de facto, o seu salvo-conduto para a pergunta demolidora:
Queres falar sobre essa camisola? E tens a certeza de que gostas dessas meias?
Mas ele não se importava, ou importava-se e sentia a impotência – ou, quiçá, falta de vontade -, para enveredar por um caminho diferente no tocante ao seu guarda-roupa pessoal. E continuava a cruzar riscas com bolas, castanho com verde-claro, azul celeste com cores indefinidas, padrões modernos com tecidos improváveis. Tudo em nome de uma indiferença – ou de uma ignorância.
Os amigos riam-se – sendo que o riso era a sensação que se seguia ao espanto - e sugeriam que ele adoptasse a farda como vestimenta permanente.
Mantém o pijama, se quiseres, por desconhecimento nosso e pouco entusiasmo pela atracção do abismo.
Carlos, o administrativo do rent-a-car de maior sucesso nas redondezas, volta a sorrir com bonomia salpicada com uma indiferença que caracteriza a inteligência de algumas pessoas. Durante a semana usa a sua farda clássica; de noite, ou aos fins-de-semana, dá asas à sua criatividade mais louca - ou mais errada, porque loucura e erro nem sempre caminham juntos.
Para efeitos desta crónica não interessa o resto do calendário. Importa reter todas as últimas quintas-feiras do mês, momento em que o rapaz da visão desgovernada das cores e padrões convida a Cristina para jantar em sua casa. Nesse exacto dia, que se repete com a certeza da lua cheia e das marés, Carlos veste a sua melhor farpela: um fato completo cinzento-escuro, uma camisa azul e uma gravata com um motivo que não passa de moda. Era clássica no tempo do seu pai, será clássica no tempo hipotético do seu filho – imaginando que possa vir a ter descendência. Uns botões de punho discretos dão um toque de classe ao conjunto.
Socorramo-nos, agora, do lugar-comum: há frases que se repetem e que não perdem o seu encanto. Citemos o amo-te, mas, também, o que seria da minha vida sem ti e, nalguns casos, o que seria da tua vida sem mim. Cristina não fugirá à regra. Entra e beija-o numa sala que, embora modesta, está repleta de flores propositadas para aquela noite. Ardem velas aqui e ali, baixou-se a luz aos candeeiros existentes para que a penumbra inebrie os sentidos e convide ao erotismo. Cristina aloja dentro de si sensores que disparam na última quinta-feira do mês em casa do Carlos, empregado no ramo do aluguer de automóveis.
Depois do beijo longo e apaixonado, do aspirar do aroma das flores e das velas de cheiro que ardem romanticamente, a rapariga ajeita-lhe o nó da gravata e sacode-lhe a impressão de uma poeira nos ombros. E repete a frase, porque descobre encanto na rotina de algumas expressões.
Estás muito bem vestido.
Carlos sabe que Cristina é cega de nascença. Mas, mesmo que a inconsciência do mal não configure um pecado, não gosta de imaginar que ela está mentir.
Muito bem vestido, mesmo.
Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.
JdB
Nota: texto publicado sábado no Porta do Vento
3 comentários:
Estas páginas de moleskine são sempre um regalo. Bom feriado!
Boa história, bem esgalhada.
Continue assim inspirado, olhe que vai longe.
Beijinhos
Que delícia, que subtileza, adoro estes personagens do seu bairro ... pcp
Enviar um comentário