30 outubro 2009

Uma espécie de trela

agustina, ao que dizem, não gosta de poetas.
enfastia-se com a mediocridade,
a grandiloquência serôdia,
o pendor falsamente trágico,
o anacronismo cheio de pretensão,
de quem vive em tabernas
afinal inundadas de alegria
e regadas por boa-disposição.

que a boa (mas boa!) poesia
é cinzelada e pungente!,
gravada na pedra e no cimento!,
cheia de gravitas e de pathos!,
ou então prenhe de vida em cascata!,
mas sem efeitos estilísticos fáceis!,
antes sublimação do próprio momento!.

holderlin, blake, byron,
ovídio, rilke, são joão da cruz.
como cotejar a poesia moderna
com tão absolutos cânones?
ai credo, ai Jesus..

entendo-a, minha senhora, como a entendo.
mas deixe-me dizer-lhe uma coisa ao ouvido:
quando num dia de inverno, frio mas bem frio,
precisei de agasalho (e não de um livro),
não me saltou ao caminho um único general das letras,
nem me acudiu nenhum poeta místico,
não me deu a mão nenhum dos insígnes rafaelitas,
nem mesmo o mais romântico dos ultra-românticos.

quem falou comigo, lembro-me com ternura,
foram esses poetas da fealdade e do concreto,
aqueles que rasgam a noite mais escura,
aqueles que iluminam o nosso deserto.

(eu gosto da senhora dona agustina, palavra.
um dia destes até estou a pensar ler um livrito dela.
zomba da poesia, mas acho-lhe imensa graça,
é que certa prosa parece mesmo poesia
mas como que presa por uma espécie de trela.)

gi

1 comentário:

Anónimo disse...

ADORO a ideia de que certa prosa é poesia presa por uma trela! Que espectáculo de imagem, é tal e qual! Mal comparado, e mudando para um registo bem menos "elevado", ouvi dizer que o Fernando Pessoa (mas não sei se isto é verdade ou não, atenção...)dizia que os brasileiros eram portugueses à solta... como sempre, tudo o que o gi escreve é um espectáculo! Obrigada, gi. pcp

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