19 outubro 2009

O inteligente

Sim, sim. Inteligência, claro. Olha…

Era de madrugada, e Gaspar ouvira este princípio de frase que se imobilizara no cérebro como uma folha teimosa num remoinho de Outono.

Gaspar, o nosso protagonista, tinha-se formado com seriedade no Instituto Superior Técnico. Como sempre acontecera ao longo daqueles cinco anos, corria para enxergar, em duas pautas, em dois pavilhões, as notas dos dois cursos que tirara em simultâneo. Como costumava dizer

temos dois olhos, dois hemisférios cerebrais, dois ouvidos, duas mãos, duas pernas…

e isso era, para si, argumento bastante para a empreitada. Dupla, diga-se de passagem.

Considerado um homem superiormente inteligente, discorria com propriedade sobre qualquer assunto, vivendo nesse limbo que separa, por vezes, a cultura da informação. Ria pouco e o sorriso, quando se abria, era mais um esgar de espanto por ver amigos e colegas gargalhando com uma série cómica, um filme ligeiro, uma anedota. Mas Gaspar, na sua seriedade, tinha a mente noutro lado. Enquanto os camaradas de curso se afadigavam a ver de onde partia a bola (eufemismo para ilustrar a vida em geral, com as suas tendências científicas, propensões literárias, pendores médicos) Gaspar contraía os olhos que todos temos na mente e sabia para onde seguia o esférico cuja partida os outros descortinavam.

O mundo girava e Gaspar, com um bilhete comprado no carrossel da vida profissional, sentia que tudo era uma espiral ascendente. De estagiário passara a contratado a prazo; num feliz Natal fora presenteado com o ingresso nos quadros; quando o conheci em casa de amigos comuns (moramos todos num raio de mil e quinhentos metros) Gaspar era director-geral da empresa. Continuava a não sorrir, mas talvez achasse isso dispensável face a um carro fabricado ontem, a um cartão do ouro mais fino, a férias em lugares impossíveis, a contactos internacionais ao nível da excelência.

Solicitei-o várias vezes para me resolver pequenos problemas domésticos: uma torneira irrequieta, um gás natural sem chama, uma disfunção num reóstato. Sempre prestável e solícito, percebia-se que observava a dificuldade com um duplo olhar (dois cursos, duas mãos): o olhar do cientista que pré-examina o problema à luz do conhecimento teórico e o do homem que não ri, porque aqueles que riem não sabem o que é um reóstato.

Sim, sim. Inteligência, claro. Olha…

Gaspar atentou na nudez de Marília quando ela se levantou da cama. Uma nudez alva num corpo vagamente franzino mas proporcionado, que o acompanhava em noites lentas de há alguns meses para cá. A rapariga fascinara-se por uma inteligência superior e séria que não se perdia em miudezas quotidianas, porque havia o futuro da humanidade, o aquecimento global, a escassez da água, as radiações nocivas, o trânsito caótico.

Sim, sim. Inteligência, claro. Olha… Mas és capaz de me fazer rir?

Gaspar foi desgraçadamente clarividente. Os outros veriam de onde saía a Marília. Gaspar – com os seus dois hemisférios – já percebia para onde ia a ex-fascinada. Quando lhe viu as costas desnudas por onde gostava de passar uns lábios sérios percebeu que, pela primeira vez, tinha chumbado no exame.

Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

Nota: texto que devia ter sido publicado sábado no Porta do Vento mas que não foi devido a obras de restauro no dito.

2 comentários:

Anónimo disse...

o seu retrato de personalidades, tipo pinceladas do Toulouse Lautrec (lembro-me de 4 ou 5 traços, num bocado de papel de embrulho emoldurado para uma exposição, com uma expressão de nos deixar emudecidos...). Vc é parecido!. pcp

fugidia disse...

Ainda bem que aqui o postou :-)

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