25 fevereiro 2010

A arrumadora de armários

Tinha horror à desarrumação e à desordem. A perspectiva de uma almofada fora do sítio ou a visão de uma migalha na alcatifa, impelia-a de imediato a inclinar-se para colocar a almofada junto às outras (sempre numa determinada sequência de cores e tamanhos) ou a dobrar-se até ao chão para apanhar o minúsculo pedaço de pão.
Não podia. Fazia-lhe mal aos nervos. Adorava a organização, a limpeza, o método sempre certo e igual de cada dia limpar cada divisão da casa, começando no mesmo canto e terminando no mesmo quadro pendurado na parede. Uma Mãe extremamente organizada, um Pai totalmente caótico, uma infância num colégio de freiras muito dadas aos lavores e trabalhos manuais, uma adolescência muito metida em casa e uma fraqueza extrema, tinham-na levado à humilhante condição de “maníaca das limpezas”, como era conhecida entre os seus (poucos) amigos e, infelizmente, até junto da sua própria família.
Não se conseguia controlar. Tinha tentado terapias, tomado calmantes e mézinhas várias, feito tricot a metro e desporto ao ponto de ficar à beira de uma síncope (para “afastar as limpezas do seu pensamento, minha Menina”, tinha dito o psicoterapeuta), mas o seu amor às limpezas e à ordem voltavam, após cada interrupção, com um vigor acrescido. 
Era uma pulsão superior a si própria. Tinha aprendido através da terapia que tinha uma desordem nervosa com um nome esquisito, do qual aliás já nem se lembrava. E depois? As manias não se resolvem com palavras médicas nem técnicas. Resolvem-se na prática. E a prática demonstrava-lhe, vez após vez, que nada lhe solucionava o seu problema.
Até a sua vida profissional tinha ficado dramaticamente afectada. Menina estudiosa e metida consigo, de índole dócil e muito certinha, tinha ficado encantada quando lhe tinham proposto trabalhar como secretária do gerente de uma loja de confecção para senhoras. O gerente adorava a sua pontualidade, o seu rigor, o zelo que despendia no trabalho que lhe era confiado. Nunca se tinha visto uma secretária tão amável, educada e extremosa. Velava pelo patrão e pelo negócio (na parte que lhe cabia, é claro) como se disso dependesse a sua própria vida. Havia até quem dissesse – as más-línguas, claro está – que ela estava apaixonada pelo patrão.
E os dias corriam, e as semanas passavam e os meses sucediam-se numa doce e tranquila monotonia que em tudo condizia com o temperamento da Menina. Podia-se até dizer que era uma pessoa feliz (com um f pequeno, entenda-se). As horas do dia passava-as dactilografando, enviando faxes, escrevendo cartas comerciais, conferindo notas de encomenda, até tratando de alguns assuntos pessoais do gerente. As horas da noite, depois do jantar e da novela, gastava-as no habitual frenesim das limpezas, as quais, apesar de estar empregada (e supostamente cansada no final do dia), não tinham cessado nem em número nem em intensidade. As contas da luz aumentaram-lhe consideravelmente porque tinha a luz acesa quase toda a noite. Só pela madrugada, quando a luz no horizonte começava a clarear e ela se deitava para repousar da vigília a que se forçava diariamente, é que as luzes eram extintas e a casa entrava em absoluto silêncio. Silêncio esse que era depressa rompido pelo animar das ruas e o ladrar dos cães da calçada que se ía enchendo de movimento.
Mas o excesso de trabalho tem os seus custos e a erosão do tempo e do trabalho excessivo começou a fazer os seus estragos. A Menina começou a definhar. Cada dia acordava mais cansada, mais macilenta, com imensos semi-círculos roxos por debaixo dos olhos castanhos e redondos. E estava a perder peso de dia para dia. “O que se passa consigo, Menina?”, perguntara o patrão um dia que a vira cambalear junto à máquina do café. “É só uma tontura”, dissera ela. Mas as tonturas repetiram-se por mais umas semanas. Até que uma manhã foi forçada a ficar na cama. Não conseguira mesmo levantar-se. Só teve forças para pegar no telefone que repousava na mesa-de-cabeceira do lado esquerdo da cama e informar o contabilista (que morava longe e que chegava muito cedo à loja de confecções) que nesse dia não poderia ir trabalhar. “Avise o patrão, se faz favor, Senhor Silva”, pedira ela em voz sumida.
Pela tarde, depois de ter repousado um pouco mais, conseguiu pegar no telefone e falar à Mãe que, como todas as boas mães, se prontificou a ir vê-la e ajudá-la no que fosse preciso. E foi aí que a Mãe se assustou. “Não vais trabalhar tão cedo, minha filha, nem que eu tenha de te amarrar à cama”. Ficara horrorizada com a visão dos imensos braços esquálidos da filha e com a sua tosse cavernosa. É certo que a achava abatida nos últimos tempos, mas como tinha estado recentemente na terra com uma prima querida a quem tinha morrido o marido, não tinha visto a filha nas últimas semanas. “Vou pedir ao médico que venha cá ainda hoje”. O médico veio e fez o seu diagnóstico: “Esgotamento nervoso e fraqueza extrema”. O tratamento era estar deitada, a sopas e bolos, até a fraqueza se ir.
E acabou mesmo por ir. Mas muito lentamente, porque a detentora da fraqueza não conseguia estar parada. Isto é, estava parada quando a Mãe lá estava em casa. Mal ela saía, para ir fazer compras ou tratar de alguma coisa, punha-se a aspirar os sofás, a limpar o pó aos quadros, a arear as casquinhas, até a limpar com um cotonette as pregas do manto de gesso pintado da Nossa Senhora da Conceição que se encontrava na cómoda do quarto. Por isso o seu restabelecimento foi mais lento.
Dessa época dolorosa e prolongada, resultara o verdadeiro início da sua obsessão pelas limpezas. Se desde sempre se tinha preocupado com a manutenção da limpeza e ordem do seu pequeno apartamento, nunca como após a sua paragem forçada se tinha esse ímpeto manifestado com tal intensidade. Não conseguia parar. Limpava o que estava limpo, arrumava o que estava arrumado e lavava o que já cheirava a fresco. Era como se os meses em que fora forçada a parar se tivessem concentrado todos nas horas dos dias que estava agora a viver, impelindo-a, muitas vezes a contra-gosto, a tornar mais perfeita uma ordem já de si sem mácula.
Foi nessa altura que tentou todo o género de terapias e de tratamentos. Mas nada melhorou a sua condição psicológica. Por isso teve de abandonar a loja de confecção de roupa para senhora. Com grande desgosto para ela e para o patrão, que gostava muito do seu trabalho e que dificilmente conseguiria arranjar alguém tão eficiente e perfeito. Os colegas do trabalho fizeram-lhe uma pequena festa de despedida e aquela comemoração comoveu-a até às lágrimas. Mas como podia ela compatibilizar um trabalho de 8 horas diárias com o desgaste de passar noites seguidas praticamente sem dormir com a preocupação de limpar e ordenar coisas que, para qualquer pessoa, já estavam perfeitamente limpas e ordenadas? 
Com o tempo, aprendeu a conhecer-se melhor e a aceitar-se mais. Vivia de uma renda de um pequeno apartamento na Graça que o Pai lhe deixara em herança e de um subsídio de incapacidade que conseguira arranjar através da Segurança Social. Os rendimentos eram parcos mas chegavam-lhe. Não era pessoa de extravagâncias e uma televisãozita a cores chegava-lhe perfeitamente. Passava os serões sózinha ou acompanhada pela Mãe. Os poucos amigos que tinha foram afastando-se à medida que a sua obsessão aumentava. Na altura em que a convidavam para sair, quando ainda trabalhava, recusava sistematicamente todos os programas porque estes lhe roubavam tempo para pôr a casa a brilhar. “Nunca mais te telefonamos”, dissera-lhe um dia uma das amigas do colégio de freiras, “Se quiseres estar connosco, telefona-nos tu”, atirara-lhe com algum azedume.
Mas ela nunca telefonou. Como podia ela telefonar se tinha tanto que fazer em casa: pôr a roupa a corar, lavar à mão as peças mais delicadas, tratar dos canteiros na varanda, fazer compotas para o Inverno (tinha conseguido pôr à venda uns boiões da sua confecção na mercearia da esquina), serzir os panos de cozinha mais antigos, encerar os móveis, limpar os vidros. Havia sempre tanto que fazer.
Mas o trabalho de que mais gostava era limpar e arrumar armários. Começava por esvaziá-los completamente, após o que, com um pano (molhado ou seco, consoante os casos) o limpava até ao mais recôndito dos cantos. De seguida, limpava-o por fora, com um trapo húmido ou com um pano embebido num produto para móveis “para lhes dar vida”, como costumava dizer. E depois era vê-la forrar o armário, colocando-lhe barras anti-traça e saquinhos de alfazema, lavando todo o seu conteúdo, secando-o e arrumando-o meticulosamente, respeitando integralmente a ordem inicial. Adorava forrar caixas e caixinhas, de tecido ou papel igual ao armário, que utilizava para arrumar todo o género de pequenos objectos e adereços.
Sentia-se realizada ao limpar o roupeiro, o armário do corredor, os armários das loiças e da cozinha, o pequeno louceiro da sala! Dava-lhe um prazer imenso criar ordem, tratar dos panos, dos linhos e das loiças! Só tinha pena de não ter uma casa maior onde pudesse ter mais armários. Era, decididamente, de todos os trabalhos caseiros, aquele que mais a completava.
E foi aí que a sua vida deu uma volta. Quando pode sair de casa, passadas as semanas de fraqueza, a Mãe pediu-lhe se não se importava de lhe forrar umas gavetas. Ficaram perfeitas. Passados dois dias, voltou a pedir-lhe se lhe dava um jeito no armário das roupas de casa, cheio a transbordar de colchas, toalhas e lençóis herdados da avó e bisavó. Com que prazer cumpriu a sua tarefa! Com que regalo seleccionou, lavou, pôs a corar, engomou e arrumou os muitos e rendados panos que já não via há anos! Sempre era uma distracção arrumar armários que não os seus!
E desta singela contribuição, nasceu a sua verdadeira vocação. Ao compreender o alento que esta simples e casual colaboração tinha dado à filha, a Mãe, feliz, aprontou-se a passar palavra às suas vizinhas de prédio, que se apressaram a dizê-lo às suas filhas e noras que, por sua vez, contaram às colegas de escritório e fábrica.
E era vê-la, satisfeita e desenvolta, de uma casa para outra, a arrumar armários, roupeiros, guarda-fatos, sapateiras, frigoríficos, louceiros, cristaleiras, estantes e todos os espaços em que era possível criar ordem. As clientes estavam felizes e a Menina nem se fala. Encontrara, finalmente, uma forma criativa de compatibilizar o seu gosto pela limpeza e pela ordem com a sua vida profissional. Isso dava-lhe tal sensação de alegria e liberdade que até lhe parecia que o coração se expandia. Ponto final nos tratamentos, nas mezinhas e nas conversas com doutores de óculos e barba aparada. Tinha a sensação que se tornara uma criadora, uma criadora de ordem e de limpeza, ao inventar novas formas de arrumar, ao escolher novas fragâncias para colocar junto à roupa lavada, ao trocar a ordem dos livros e dos retratos das estantes, ao criar, em suma. Uma forma de criação diferente das que conhecia, “menor” concerteza, mas, mesmo assim, uma forma de criação, apelativa aos sentidos e que, sobretudo, agradava imensamente às suas clientes. Sentia-se feliz (com um f quase grande).
E por isso, quando em certa tarde se sentou num banco de jardim de bairro, rodeada de verde, de flores e de pombos, não estranhou que um rapaz, de fisionomia séria e camisa muito bem engomada, se sentasse ao pé de si e, timidamente, enceta-se conversa. Falaram sobre o tempo lindo que fazia, sobre a poluição da cidade (e de como era bom encontrar, ainda, um espaço verde e limpo para descansar), comentaram a briga dumas crianças que gritavam à distância e, na sequência da conversa, tomaram conhecimento dos respectivos nomes. Ao que o rapaz, inclinando a cabeça na sua direcção e olhando-a directamente, lhe perguntou com toda a educação: “E a menina Laura o que é que faz?”. E a Menina certinha, composta e dedicada, com um novo brilho, vagamente trocista, a dançar-lhe nos olhos castanhos e redondos, respondeu-lhe: “Sou arrumadora de armários”. E sentiu-se Feliz com um f grande.
PS: ah, já me esquecia… esta é a música preferida da menina Laura.



pcp

5 comentários:

Maria Lúcia disse...

Ainda bem que a Menina Laura encontrou a verdadeira vocação e a seguiu. Muitas vezes se colocam em primeiro lugar coisas sem a menor importância.
Gostei muito deste texto.
Um abraço.

Anónimo disse...

Abrir o Adeus até ao meu regresso em Estremoz, tão perto da formosa Vila Viçosa terra natal da Florbela Espanca...e ouvir um dos seus poemas mais belos teve um sabor especial...
Imaginei a menina Laura sentada num banco de lá. Obrigado PCP
deA

Anónimo disse...

Oh PCP

(aqui entre nós esta sua alcunha não condiz minimamente consigo, tenha lá paciência! É que simplesmente não me conformo! :)

A sua menina Laura simplesmente fascinou-me apesar de por causa do trab ter tido de interromper, muito a custo e contrafeita, a leitura deste texto. Você, tal como o autor "socegado" mais abaixo(que, diga-se de passagem, de cego não tem nada:), devia pensar seriamente em escrever também um livro - pode ter a certeza que teria muitos fãs, comigo à cabeça, pode crer! :)))

Parabéns!

Maria BCC

Anónimo disse...

Mas que comentários tão simpáticos! Obrigada a todos. À Maria Lúcia e à Maria BCC por terem comentado o texto e a história. Ao deA que se centrou mais na música (tem razão, este é um post sobre música...). E sim, a Menina Laura podia estar sentada num banco de jardim em Vila Viçosa. Mas eu imaginei-a no Jardim da Parada, em Campo de Ourique ... Obrigada a todos. pcp

Anónimo disse...

A vida merece ser desfrutada com um F grande !

Este conto, além de estar muito bem escrito… é de rico conteúdo e bem actual…dá que pensar… quantas meninas Lauras perdidas na rotina e imbuídas de preconceitos, não se encontram com elas próprias e com a vida… o tão óbvio evidente, nem sempre se desenha facilmente nas nossas complicadas mentes…

Bom gosto literário e musical da “menina Laura”, mas essencialmente muitos Parabéns à “autora” da personagem pelos momentos tão agradáveis de leitura que nos proporcionou.

Quanto ao PCP, pessoalmente gosto da irreverência… porque, sem ter mm nada a ver consigo, as letras estão lá todas!!!

Bjs mt gr

Catarina L V

Acerca de mim

Arquivo do blogue