27 fevereiro 2010

A esperança de Margarida

Gonçalo a rir todos os dias que se seguiram, em que a Rosa ia subindo o tom das ordens que dava, pregava-lhe um beijo na testa e saia com um séquito querido pequenino atrás a fazer barulho. Distribuía-os a todos pelos colégios e finalmente entrava no seu escritório com luzes, cheiros, linhas e cores habituais a todos que andam no mundo por aí cada dia, sempre contente por voltar à sua rotina normal e numa atitude de luta perante todos iguais. Tinha uma empresa crescente de design com um sócio e amigo, o João, com quem costumava jogar squash e almoçar sandes, saladas, sumos e essas coisas sempre saudáveis para eles e para toda aquela geração, menos para a Rosa, claro, que achava que passavam todos fome!  

João Freitas era também da Cabreira e ao avô dele era o dono d’A Trombeta, o pequeno jornal semanal lá da terra sempre com notícias das pessoas que lá vivem, do dia em que fazem anos, do orfeão, do fórum e esse género de coisas. As indignações pelas soluções do trânsito, dos prédios que crescem pelos cantos, e assim! Tanto João como Gonçalo lembravam-se amiúde com ternura do velho José Freitas Júnior, avô do João, sempre curvado, pequenino e magrinho, nos últimos anos da sua vida ao volante de um enorme Ford Granada, o carro grande da terra, que veio depois do da Condessa quando este desapareceu da vida da vila. Este Ford era demasiado grande, elegante, sóbrio, austero, snob! Era usado todos os dias para ir de casa para o jornal e vice-versa, também ao fim de anos ainda estava novo e só conhecia as mãos e os pés do Senhor Freitas, sempre respeitador.  

A Trombeta eram duas salas no local mais central da vila, se é que isso podia existir, cheias de pastas, papéis e livros. Máquinas de escrever todas abauladas, cheias de design, uma ainda do tempo da guerra; cheiro a pó, a respeito e a seriedade, numa atitude de defesa contra a modernidade! Também o Senhor Lopes lá andava todos os dias, empregado desde não se sabe quando, com o cabelo empastado de brilhantina, gravata sempre preta num eterno luto, mangas da alpaca e uma tristeza sem fim nos olhos. O seu destino era servir o Senhor Freitas, sempre velho de fato com colete, a corrente do relógio preponderante e um ar constante de patrão. A casa dos Freitas, por seu lado, era uma típica moradia de província construída no princípio dos anos cinquenta, com vasos sem ser preciso, porque tinha terra a rodos por todos os lados, rendas em cima da televisão e uma sala de visitas onde nunca se entrava para não sujar os couros, a ceia de Cristo e as pratas pequeninas que a vida foi dando, de comemorações e isso. A Dona Deolinda Freitas, dona de tudo e da serenidade do dia-a-dia, gorda e corada com aventais de flores e folhos, cabelo grisalho apanhado em puxo no alto da cabeça e óculos redondos sobre uma eterna cara simpática, tinha atrás um quintal com hortaliças, galinhas e algumas laranjeiras; tudo ao serviço da sua cozinha. Cozinhar bem, mais do que um ponto de honra, era um destino. A Dona Deolinda fazia parte do grupo de senhoras que todas as semanas lanchavam em casa do Senhor Abade. Mesmo depois da Condessa ter deixado de ir por estar fraca, um terço era sempre por ela, durante meses a fio, entre todas, por todas e no coração de todas.  

O imponente Ford do Senhor Freitas veio substituir a grandeza do Pontiac da Condessa pelas ruas da Cabreira de casas toscas e prédios pretensiosos, todos os dias a rolar entre a Vivenda Deolinda e A Trombeta. Às terças-feiras quebrava a rotina pela porta vermelha do Abade Afonso onde descia a Dona Deolinda, sempre com as mesmas recomendações para ir devagar e com cautela, enquanto fechava a porta do carro com uma mão e segurava os bolinhos com a outra. E lá continuava o Senhor Freitas em direcção ao jornal, tipicamente curvado e de chapéu com ar zangado, como que a congeminar contra a vida e a ordem das coisas: as calças à boca de sino, a música que se ouvia aos berros, a guerra do ultramar, o preço das coisas, enfim, um rol de calamidades que tinha a missão de denunciar n’ A Trombeta. Escrevia sob vários pseudónimos para dar uma noção de mundo. Até mesmo a Dona Deolinda tinha a cargo o artigo “Culinária & Lavores” e assinava com o nome de solteira, sempre podia dar um ar mais abrangente! E sim, aquele Ford sempre ajudava a todo aquele ambiente digno, e o Senhor Freitas era considerado pelos seus iguais e respeitado pelos netos que tinha em Lisboa, principalmente pelo João, que adorava as férias da Páscoa em que se divertia à grande com o Gonçalo e em que tinham explicações de português e de matemática com a Dona Domingas, a professora primária da Cabreira tão prestável e ingénua como solteira e beata! As más notas eram mais do que inevitáveis: eram obrigatórias! Tinham um óptimo pretexto para passarem as tarde juntos a andar de bicicleta e a fumar às escondidas. Os lanches de leite e pão com manteiga em casa das avós ou tias ficaram para sempre na memória de ambos.  

Já que a pequena casa onde vivia tinha sido herdada dos pais, o único grande investimento que a Dona Domingas tinha feito na vida tinha sido há trinta anos, e resumia-se ao já completamente familiar na Cabreira Simca Étoile branco que tratava com o maior esmero. Todos os dias o viam passar a ir e a vir da escola, sempre com a professora de peito encostado ao volante, com o ar responsável de quem tem na mão a educação de várias gerações de uma freguesia inteira de homens e mulheres de hoje e de amanhã. Viveu sempre com a satisfação de ter feito um bom negócio e trocá-lo estava absolutamente fora de questão, porque o velho Simca sempre se tinha portado impecavelmente bem; nunca a tinha deixado ficar mal, dizia. A professora Domingas também ia a casa do Abade Afonso às terças, claro, e o seu era o único carro que todas as outras conheciam há muito e a quem confiavam os mexericos que não podiam dizer em frente do Senhor Abade ou do sacristão ou de alguma criada enquanto ela as despejava uma a uma em casa de casa no fim do chá semanal. Trinta anos depois mantinha-se com os tampões e os cromados a reluzirem, os brancos sem uma nódoa e o motor equilibrado. Era também o cúmplice da sua solidão e da revolta nunca resolvida de Deus lhe ter levado os pais demasiado cedo, achava, apesar de terem morrido ambos depois dos oitenta. Era também eterno companheiro na sua tristeza de ter perdido um irmão na tropa em África, não por uma bala, mas para uma bifa; que nunca mais tinha dado notícias e que era toda a família que lhe restava, gente da sua gente, sangue do seu sangue. Se calhar tinha por lá sobrinhos e não sabia. Mas também essa era uma dúvida que tinha deixado de ser torturante dentro do seu peito, que tinha acalmado com o tempo e com São Cristóvão, santo da sua devoção e dos viajantes!
  
Ruth Breiss, uma sul-africana cheia de peito a viver num bairro caro de Joanesburgo, nos seus quarenta e muitos dentro dum saia-casaco cinzento curto, saltos altos e camisa de folhos de seda natural, pernas, decotes e boquilhas muito generosas, fechava os olhos sempre que lhe acendiam um cigarro e contorcia-se numa atitude entre o provocador, o erótico e o vendedor. Em Junho de 71 Joanesburgo era a mesma cidade transpirante de sempre lá fora, a mais parecida do mundo com Nova Iorque, mas em África, e com a força que isso lhe dava, em onda em tesão, no que fosse! No meio dos 20º andar do Hotel President o ambiente era sempre o que acompanha o imaginário de qualquer um, naqueles anos em que se usavam golas grandes, calças à boca de sino e penteados cheios de onda: alcatifas pretas de pêlo alto e maples redondos brancos e roxos, tudo muito fofo e cheio de curvas. Bares com garrafas de cores e espelhos pelos cantos e também cadeiras de verga tipo trono pelos terraços sobre as luzes e a cidade. Mesmo em Joanesburgo toda a gente ainda recuperava da estreia do Laranja Mecânica.  

Ruth quando se levantava nestes sítios assim desse género, em reuniões que tinha amiúde, com o queixo para cima e as mãos a abrir em leque, com anéis caros mas discretos, adorava no fim fazer ouvir os fechos vitoriosos da sua mala James Bond, entre engravatados novinhos e desconhecidos de bancos e seguradoras, em que a sua vontade tinha prevalecido de certeza e em que também por certo tinha fechado um negócio extremamente vantajoso para a sua frota de traineiras de pesca ao largo. Pescava, congelava e exportava. Passou os olhos pelos quinze em volta da mesa, todos com olhares de respeito e impotência, e sentiu que nenhum podia atingir o mundo a que pertencia. Desceu ao piso -3 sempre com o queixo ao alto e gostou da sua sombra solene e esguia, da sua postura entre o comum dos mortais e das cores que a sua alma emanava; entre o betão e as tiras amarelas da parede da garagem e todo o universo que desafiava a toda a hora! Entrou no carro, um Datsun absolutamente novo e vermelho, chegado do Japão antes de todos os iguais, e sentiu-se uma vez mais acima de todos, como já ia sendo costume entre os negócios que fechava, a casa que tinha e os amigos que mantinha! Dirigiu-se então ao Blue Train, o restaurante mais na berra naquela época por lá, mas sem saber bem porquê, apenas sabia que era onde era normal ir downtown a meio da semana com a vida toda a correr-lhe bem. As notícias espalhavam-se depressa cidade fora, apesar de ser tão grande, da televisão ainda ser pouco eficiente e de não haver telemóveis! Sentou-se enquanto sorria e cumprimentava alguns presentes com a cabeça, e abriu o guardanapo sem vontade de comer como se o trabalho continuasse sempre. Mesmo assim acabou por pedir sopa fria de caranguejo e trufas, achou que calhava! O que queria mesmo, aqui para nós, era que o empregado giro que rondava se sentasse ao seu lado e lhe contasse uma história, lá da sua terra ou que inventasse, ou ainda fizesse qualquer coisa desde que lhe fizesse companhia pertinho, só para lhe dar calor e ouvir o som mesmo que fosse medíocre da voz dele. Já tinha claro na sua cabeça e em segredo que nada na sua vida lhe fazia sentido, assim sozinha, sem ninguém para partilhar momentos grandes que ia conquistando dia a dia! Podia sempre fazer compras depois nas lojas caras da zona ou meter-se no carro novo que acabava por dominar sempre e era lindo, lindo de morrer. Lindo também era um português do norte, da Cabreira achava, e que conheceu enquanto ele fazia a tropa em África e que nunca mais esqueceu. Sentia ainda os seus músculos e o seu peito a rebentarem camisa e o ar seguro com que a amava completamente! O calor das suas mãos nas costas e nos ombros, a sua cara pelo pescoço e pelo cabelo, as pernas de ambos cruzadas sem saberem onde começavam e acabavam, da maneira como era deitada no chão como se flutuasse. Tinha-lhe tocado completamente para sempre, até aquele ponto em que o seu corpo se confundia com o dele, mixed! Tinha-a feito sentir mulher, pertença de, como ninguém mais o tinha conseguido, até aí e a partir daí. De um momento para o outro nunca mais ouviu falar dele, nunca mais lhe tinha visto o rasto, acabou por se perder, assim de repente, em tempos confusos.  

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