16 março 2010

Ao luar

Todos na região o conheciam. Uns pessoalmente, outros pelos rumores que se murmuravam sobre ele, e alguns apenas por ouvirem as suas fúrias, cujos gritos assustavam quem passasse à sua porta. Famoso pelo seu temperamento, geralmente mau, e pelo seu génio, muitas vezes também com o adjectivo anterior. Era compositor, e como muitos outros saía de noite para procurar a inspiração que teimava em fugir.

A ela, ninguém a conhecia. Ninguém falava dela, ninguém olhava para ela na rua, e ninguém a ouvia quando pedia uma moeda para um pão. Era cega de nascença, e essa condição tinha-lhe trocado muitos dos pequenos prazeres da vida por pesadas amarguras. Um desses pequenos prazeres foi o de não poder ver a lua cheia sobre o lago vizinho. Foi uma cruel partida que a vida lhe pregou. Deu-lhe uma cama com uma vista aberta sobre o lago, mas tirou-lhe os olhos que a podiam ver.

Foi num desses pequenos passeios nocturnos que ambas as personagens se encontraram. Ela, enfezada e encolhida num canto, ouviu-o a aproximar-se. Já o tinha ouvido passar várias vezes durante a noite, e identificava-o sempre pelas melodias que trauteava pelo caminho. Decidiu pedir-lhe, em vez da habitual esmola, que ele lhe tocasse a vista que a cegueira lhe havia roubado.

E foi esse pedido que lhe devolveu a inspiração que teimava em fugir. Correu para casa, sentou-se ao piano, e de lá saiu uma imagem para o reflexo da lua sobre o lago que vale mais que mil palavras.

SdB (III)

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem alinhado. Não suspeitei nada que o seu texto fosse desembocar na Sonata ao Luar de Beethoven. Muito obrigada. Será que ouviu esta Sonata em Berlim?? pcp

Segismundo disse...

pcp,

Infelizmente não, não ouvi esta sonata em Berlim. Deve ser um programa muito interessante ouvi-la na sala principal da Filarmónica, tocada por um desses pianistas de topo.

Obrigado pelo comentário,

SdB (III)

Ana LA disse...

Touché! Como não tenho palavras, mando um beijo

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