04 novembro 2010

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 9 anos.

Há aqueles que nascem optimistas – em toda a escuridão vislumbram uma luz, para toda a tempestade antevêem uma bonança. Outros há para quem o raciocínio é a inversa. Sobram aqueles, talvez como eu, que ainda se espantam pelo próprio sorriso, quando tudo neles prenunciaria um esgar.

Tive a sorte de perceber que a vida oferece, por cada pilar que tira ao edifício que nos sustenta, a possibilidade de encontrar um outro pilar. O que nos impede de o descortinar, quedando-nos teimosamente numa casa tombada num desequilíbrio inútil? A raiva, a impotência, o desespero, a tristeza infinda. São sempre lágrimas que nos toldam os olhos, que nos impedem de ver mais além, de vislumbrar uma infinitude de possibilidades de redenção. São as lágrimas que acompanham um grito de fúria ou um soluço de saudade.

Sabes, cada vez mais tenho a certeza de que não invento nada, não crio nada, não deslindo nada. Uso as palavras que outros inventaram, tenho as sensações que outros já definiram. E, no entanto, sinto muitas coisas como se fosse o pioneiro delas no mundo. Vejo-me como uma criança que usa uma gravata pela primeira vez, e que responde ao fatalismo do já muitos a usaram antes de ti... com o prazer singelo da descoberta: pois eu gosto dela como se fosse o primeiro. E às vezes dou por mim a alegrar-me com este despojamento libertador que advém do muito que se perdeu. Um sorriso de criança ingénua que se abre para um campo parco de flores.

Olho para trás, para o caminho percorrido, e não deixo de agradecer. Tudo poderia ter sido diferente, mas tudo poderia ter sido igualmente pior. Agradeço a fé que me foi dada, a convicção da estrada difícil que nos levará ao Céu, as dúvidas permanentes que lembram a minha condição humana, a gente a quem devo tudo, o desafio diário de dizer sim à santidade; continuo a cair, a nem sempre saber o caminho, a perguntar, a estender e a receber uma mão, a errar. Tu bem me ouves a pedir discernimento e força.

Agora dou por mim, num silêncio metafórico, a olhar para as pessoas. As que me rodeiam hoje não são mais do que eram ontem. As que chegaram são, talvez, em número conforme às que partiram, como se até nisto o deve e o haver tivessem o dom da igualdade. Acontece que talvez as veja melhor, é só isso. Nelas já não descortino as que nem sempre estão, as que escolhem lados, as que vivem no orgulho, as que fazem da tolerância uma palavra difícil de soletrar. Nelas já não descubro as minhas próprias falhas, mas em todas tento encontrar a beleza, porque talvez lhes deva a beleza que encontraram em mim.

Muitos poderão perguntar o motivo desta carta. No fundo, no fundo, tudo faz sentido: há nove anos que derramas sobre mim o pó do amor, que és o ponto na linha do infinito para onde me volto mesmo de olhos fechados. Há nove anos que fazes de mim o melhor que sou, porque o pior que também sou é obra exclusiva minha. Em dois momentos diferentes, duas pessoas que me dão o gosto da sua amizade mandaram-me uma história que poderia ter sido a tua, tantas são as semelhanças. Retive uma frase simples, que tem a beleza das coisas simples: saudade é amor que fica. É também por isso que te escrevo.

Ainda tens sete anos. Sempre disse que ninguém te levara, mas que partiras de mão dada com esse Deus que não é senão amor. No Céu, de onde velas por todos nós, o tempo não vence a eternidade, não enruga uma cara infantil, não ensombra uns olhos que brilham e se deslumbram. Terás sempre sete anos, mesmo que durante um século lembremos a tua chegada e a tua partida. Vai brincar, vai. Até logo.

Foi hoje, mas há nove anos.

JdB

10 comentários:

Ana Lopes Alves disse...

Só quem acredita na vida e na eternidade é que pode sentir assim.
Atrevo-me a uma ressalva , o sorriso de criança ingénua enche o campo de flores e há uns que mantêm essa capacidade, apesar dos cabelos brancos.
Thanks JdB

Luísa A. disse...

«Saudade é amor que fica»...
Um beijo, João.

Anónimo disse...

JdB

A força, verdade, profundidade e dimensão do que deixas escrito, é um legado a todos aqueles que sustentam a esperança e o amor como fonte de vida.
Sei do que falas, sei do que sentes e partilho igual por razões iguais, troquei o desespero por esta paz de alma e confiança.
abraço fraterno
ATM

Anónimo disse...

as flores,
e um abraço simples e fraterno,

do gi.

arit netoj disse...

Querido João,
Obrigada por nos revelar esta carta que nos fortalece no "amor que fica".
Beijinhos

maf disse...

Eu também devo pertencer aos "que sobram". Achei que ia chorar ao ler esta carta, encontrar tristeza, e afinal não encontrei senão amor.
Obrigada joao

Anónimo disse...

É impressionante. Você toca sempre, sempre, sempre, no que é realmente importante: no Amor, na entrega, no despojamento, na confiança, na tolerância, na Fé... Obrigada, JdB. As suas cartas ao seu anjinho são a coisa mais bonita do mundo. pcp

JdB disse...

Obrigado a todos pela vossa visita e palavras simpáticas.

ana v. disse...

Um beijo, João. Atrasado? Talvez, mas sempre a tempo de dizer-lhe que me tocou - como toca sempre - esta carta ao seu anjo. E que gosto de ser uma das "pessoas que chegaram", embora seja também uma das "que nem sempre estão".

JdB disse...

Um beijo, vizinha. Vem sempre a tempo.

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