19 fevereiro 2014

Largo da Boa-Hora*

A caminho do meu banco, pela Rua Augusta, pela Rua do Ouro, cruzei-me com muitos que, como eu, cumpriam o seu dia nesta etapa da hora de almoço.
Ruas aquelas, majestosas, ricas de oportunidades e diversidades, plenas de gente, todavia ingloriamente calcorreadas em passos apressados por semblantes rígidos, em alheamento, indiferença, todos aparentando estarem a cumprir uma qualquer missão marcial.
Desse encontro, duas impressões me marcaram - uma provinda do colectivo e a outra dos indivíduos.
Do colectivo, impressiona-me que a concertação de tanta gente, tanto movimento, tanto acontecer gere todavia um silêncio dominante que se entranha imediatamente, que se percebe como coisa bizarra, que não devia suceder mas sucede. Espanta, assusta e entristece. Era suposto acontecer comunidade, mas não acontece, tão só ajuntamento, coincidência de estada, de mudos, de silenciosos, de afastados, de avessos ou indiferentes uns aos outros.
Feche-se o semáforo, fique o trânsito suspenso e não ouviremos nada, nenhum som da onda humana em movimento, nem um burburinho.
Entrar nestas rotas de movimento não é ser mais uma gota de água num rio vivo, fervilhante, que corre com turbulência e efervescência; entrar, é ser gota de água que escorre solitariamente pela vidraça em dia de chuva.
Dos indivíduos impressiona-me a atitude, o olhar, o fácies daqueles por quem vou passando.
Reina a invisibilidade, são cruzamentos entre névoas, entre nadas que se intersectam por segundos, num acaso inconsequente.
Em cada passagem pelo outro, os olhares, os gestos, os movimentos, transmitem a obstinada mensagem: ignoro-te, prescindo de ti.
Não há olhares que se fixem em partilha, por segundos, de condição humana; não há sorrisos que se formem e sejam protestos de simpatia, de solidariedade; não há variações de passo, de posição, de movimento, que confirmem o reconhecimento do seu semelhante, do seu igual, que o procurem adivinhar e ler, ainda que pela simples curiosidade e interesse sobre o como vamos
Não os vejo a passear, mas tão só a passar. Cumprem-se itinerários de e em isolamento, e não percursos de divagação, distracção, revelação de presença, desfrute do outros, busca de comunicação, de interacção com o mundo envolvente.
Não se iludam, não se trata de pressa, de urgência no circular. A pressa não é a causa, mas sim o efeito, o efeito do desgosto do caminho. A indiferença pelo que vai passando é que estuga a passada e mantém o olhar fixo no chão, no espaço do passo seguinte.
Porque será assim? (é certo que não cuido da espécie dos arrogantes e outras derivas)
Não sei, mas temo que seja pela desistência do próximo, descrença que naquele desconhecido com quem se cruza possa haver uma dádiva e uma recíproca necessidade de afecto que alimente ou restaure a alegria do momento que passa.
Temo que cada um se esgote em si mesmo, desacreditando no outro, desacreditando que mesmo um desconhecido pode, numa simples e inocente simpatia, sem passado nem futuro, ajudar no presente, fazendo-nos sentir notados, vivos, importantes, seres que contam para os outros, e para quem os outros contam.
Em reciprocidade ou retaliação, se preferirem, recusa-se sentir os outros, dar-lhes reparo, simpatizar com eles, gerar contentamento pelo simples ânimo de os fazer sentir que se lhes quer dar a nossa atenção, o nosso olhar, o nosso sorriso.
“Ver e ser visto” é indispensável para não ser trucidado pelo comboio que vai passar, mas é também condição insuprível para não sermos esmagados pela solidão existencial que é igualmente mortífera.
Suspeito pois que proliferam e dominam os caminhantes desiludidos, com tamanha desilusão que aligeiraram a bagagem, deixando a alma guardada em algum lugar, como inerte inútil que não importa carregar na jornada.
Desequipados da alma, são espectros em movimento e não seres humanos em relação e comunicação.
Também sinto que para muitos, demasiados, se adensa e acumula o cansaço deste seu viver, o qual, insidiosamente, como larva de insecto, vai construindo o opaco casulo que aprisiona, paralisa e torna as suas vítimas em cegos, surdos e mudos sociais. Autistas da humanidade.
Restaurar a humanidade na Rua do Ouro, ou em qualquer outra, é o que proponho.
Não sou nem demasiado lírico nem demasiado ingénuo para propor que se retome a saudação, a palavra espontânea, os bons dias, a companhia. Nada disso.
Busco que cada um, a partir do humilde reconhecimento e interiorização da sua própria fragilidade e dependência do outro, acredite que se tomar a iniciativa de dar expressão humana a si próprio, de transparecer os seus sentimentos, de deixar fluir o seu ânimo, receberá do outro fraternidade e solidariedade, expressas na mágica sinalética da comunicação humana.
É imensa a capacidade que o aparentemente pouco pode fazer sobre o muito, quando falamos de sentimentos e estados de alma. Nunca se despreze o pouco, quer quando se dá, quer quando se recebe.
Por mim, levanto-me deste banco e começo a caminhar, determinado a dar e pedir um sinal de fraternidade àquele que passar e para o qual vou olhar com vontade de o ver e de que ele me veja realmente.
Acredito, e por isso talvez um dia volte a haver burburinho na Rua do Ouro.

ATM

(* publicado neste estabelecimento no dia 19 de Novembro de 2008)

1 comentário:

Anónimo disse...

Blog memória ? triste continuar verdadeira esta narrativa da indiferença ao outro e a si mesmo...

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