07 fevereiro 2014

Textos dos dias que correm

A Fortaleza (para além das crises)
Virtude particularmente preciosa em tempos de crise é a fortaleza. É a capacidade de continuar a viver e resistir em períodos longos e duros de adversidade. Uma força espiritual e moral a que as gerações passadas atribuíam enorme importância, a ponto de a chamarem virtude cardeal. A fortaleza permite que não se abandone a luta quando tudo levaria a fazê-lo. É a fortaleza que nos faz resistir na busca da justiça em contextos de corrupção; que nos faz continuar a pagar impostos quando muita gente o não faz; a respeitar os outros quando não nos respeitam a nós; a ser não violentos em ambientes violentos. É ela que nos mantém temperados ainda que imersos na intemperança, que nos faz resistir anos e anos num posto de trabalho errado, que nos faz ficar na família ou comunidade mesmo que todos e tudo, exceto o nosso íntimo, nos digam para ir embora.


É uma virtude a par das outras, mas, como e mais do que as outras virtudes cardeais, é também uma dimensão ou pré-condição para poder viver todas as outras virtudes quando se atua em contextos difíceis, e quando as condições difíceis se mantêm por muito tempo. É uma virtude que serve todas as outras, porque nos faz ir por diante quando falta reciprocidade. Por isso uma bela palavra que hoje recolhe muitos dos significados da fortaleza é resiliência, que diz também a capacidade de a pessoa não ceder, de se manter agarrada às paredes, de não escorregar nos diferentes declives da vida pessoal e civil. Por esta razão a fortaleza foi – e é – a salvação sobretudo dos pobres, que graças a ela conseguem muitas vezes resistir à injusta falta de recursos, direitos, liberdade, respeito. Fá-los resistir durante longas carestias, intermináveis ausências de maridos e filhos emigrados ou desaparecidos na guerra (existe uma relação especial entre a fortaleza e a mulher). Dá aos tantos Edmond Dantès da história e do presente, a força de esperar mesmo quando encerrados em prisões por decénios, só pelo facto de serem pobres. E também a fortaleza conhece a lógica paradoxal de todas as virtudes.


Na verdade, em momentos decisivos da vida a fortaleza deve ser capaz de se transformar em fraqueza para ­ser verdadeiramente virtuosa. A aceitação dócil de uma desventura, uma doença grave, um fracasso, uma viuvez, ou a reconciliação com aquela última etapa da vida quando alguém (ou a voz interior) nos diz que chegou a nossa hora. A dignidade e a força moral nestes momentos de fraqueza virtuosa dependem decididamente de quanta fortaleza fomos capazes de acumular ao longo da existência. A fortaleza é pois essencial para resistir e vencer a tentação, uma palavra que saiu do horizonte das nossas cidades porque é verdadeira de mais para ser entendida pela nossa incivilidade de consumos e apostas (na finança e em jogos de azar). E pelo contrário as tentações existem, e sabê-las reconhecer e ultrapassar significa não perder-se na vida.

É a fortaleza que faz recusar ofertas de empresas imorais, impede a venda especulativa de uma boa empresa familiar que acumula gerações de amor, dor e dedicação, que dá força para resistir a uma paixão errada e regressar fiel a casa. A economia é uma parte da vida, e por isso tem também necessidade de fortaleza para ser vida boa. Existem no entanto dois âmbitos nos quais a fortaleza desempenha um papel essencial.
O primeiro refere-se diretamente à vida e vocação do empresário. Mesmo se muita gente pensa – e infelizmente escreve também – exatamente o contrário, a economia de mercado não é um sistema que recompensa regularmente o mérito e o talento, ou que o recompensa melhor que outros sistemas (desporto, sociedades científicas, família …).
Na dinâmica de mercado não existe uma relação certa entre o comportamento virtuoso do empresário (inovação, lealdade, honestidade, legalidade …) e o sucesso no mercado. Esta relação existe frequentemente, mas pode não existir. Os resultados de uma empresa dependem de inumeráveis circunstâncias, que podem mudar independentemente do controle e do mérito do empresário ou empresária.
E assim pode acontecer que esforços meritórios fiquem sem recompensa, e que o prémio vá para quem tem menos mérito ou talento. A desventura pode atingir – e atinge de vez em quando – também o justo, o virtuoso empresário, sobretudo em tempos de crise. A prática da virtude da fortaleza pode salvá-lo, pode ajudá-lo a não se render, e a retomar a corrida.
O segundo âmbito, pelo contrário, situa-se no interior das organizações. Quando uma empresa atravessa períodos de verdadeira crise, sobretudo as que envolvem as motivações profundas das pessoas, a superação das mesmas depende da presença nestes lugares de um número suficiente de pessoas com suficiente resiliência. De facto, se não existir algum (pelo menos um) que indo para além da lógica dos 'incentivos' continua a resistir e a lutar sem se preocupar com horário e 'desperdício' de recursos, as crises de empresa não se ultrapassam. A arte do governo de uma empresa consiste quase inteiramente em saber atrair pessoas com altos valores de resiliência, em não deixá-las sair, e em conseguir que a resiliência­fortaleza aumente ao longo da experiência de trabalho.


A fortaleza, na verdade, precisa de ser constantemente alimentada, porque se é certo que se aprende a ser forte praticando a fortaleza, é ainda mais certo que sendo uma 'virtude de longo prazo', a fortaleza está particularmente sujeita ao risco de esgotamento. Sinal inequívoco de que a fortaleza está acabando (ou acabou) é a habitual frase: «Já não vale a pena», a indicar que não se consegue já ver valor no esforço de resistência. É pois muito importante não considerar nunca a fortaleza dos outros (nem a nossa) como característica imutável ou como um stock, porque pode secar e até morrer se a pessoa não a cultivar (com a vida interior, com a poesia, com a oração…), e se quem vive a seu lado não a reforçar com expressões de estima, partilha, apreço, gratidão. É possível resistir longamente em condições de grande dificuldade se não se está sozinhos, mas na companhia da virtude dos outros e da própria interioridade habitada.


Por fim, a fortaleza é indispensável para manter a alegria de viver em condições de persistentes dificuldades, doenças, traições. Uma das coisas mais sublimes do mundo é a existência de pessoas capazes de alegria verdadeira em condições objetivas de grande adversidade. Este tipo de alegria-virtuosa é um hino à vida, um bem comum que enriquece quantos por ela são contagiados. As qualidades da fortaleza necessárias para conservar a alegria não são menos preciosas e potentes das que permitem suportar as dificuldades e a dor. É esta alegria o sacramento da autenticidade de todas as virtudes, uma alegria frágil e forte, que torna o jugo das longas adversidades mais leve, e até mesmo suave.


Luigino Bruni
 In Avvenire
Trad.: P. António Bacelar 
© SNPC | 05.02.14 (tirado daqui)

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