28 fevereiro 2014

Toda a arte é autobiográfica?

Quem me está mais próximo leu os dois livros que eu escrevi: um, em co-autoria, já publicado, e o outro que dificilmente verá a luz do dia. O primeiro era fortemente autobiográfico, o segundo tinha algumas pinceladas. Este segundo livro foi lido por meia dúzia de pessoas. Para além de outros comentários, mais do que uma pessoa afirmou o mesmo: o teu livro só tem pessoas boas. Dei por mim a pensar no tema. Como não sou escritor, não tenho grandes hábitos de construção elaborada de personagens. Assim sendo, saiu o que saiu....

A discussão não é de agora e não é disparatada: a arte é autobiográfica ou é totalmente extrínseca do seu criador? E a pergunta aplica-se a toda a arte? Isto é, conseguimos ver registos autobiográficos num romancista? E num poeta? E num escultor, num pintor ou num músico? Há num busto, numa tela ou numa pauta vestígios daquilo que foi a vida do criador, ou pode ser algo totalmente extrínseco e, nesse sentido, ser absolutamente (enfim...) impessoal?

(Parêntesis: quando um actor chora, quem chora de facto? É o personagem ou o actor? De quem são, verdadeiramente, as lágrimas que vemos correr por uma cara abaixo? De quem é a emoção que provoca o pranto?)

Aceitemos, por uma questão académica, que a arte - e nomeadamente a escrita - é autobiográfica. O que diz então de mim o facto de, no livro que permanecerá numa gaveta, só ter criado personagens boas, sabendo eu que não foi um processo totalmente racional? E sabendo eu, obviamente, que o mundo não se compõe de gente exclusivamente boa. O que diz isso da minha infância, dos meus genes ou do meu meio ambiente? 

Na peça de Shakespeare (que não li) o tio de Hamlet, depois de matar o pai, casa com a mãe (pai e mãe de Hamlet), usurpando o poder. Visitado pelos espíritos, Hamlet sabe que tem de matar o tio mas, ao longo da obra, nunca o faz. Este mistério (que o é, de facto) nunca teve resposta cabal. Há quem ache que Hamlet não teve oportunidade, há quem ache que havia por ali o complexo de Édipo. Hamlet, apaixonado pela mãe, quer matar o pai. Mas o tio já o fez, pelo que... No fundo, quem sofria do complexo de Édipo, que se desconhecia à época? Shakespeare ou Hamlet? Podemos confirmar, aqui, que há dados fortemente autobiográficos na obra?  

Num longo ensaio intitulado Leonardo da Vinci and a memory of his childhood, datado de 1916, Sigmund Freud discorre sobre a obra do cientista e pintor italiano. Durante quase tres mil palavras (a quarta parte do ensaio, de um total de seis) o pai da psicanálise disseca a Gioconda e o quadro chamado Santa Ana do Louvre (Santa Ana, Nossa Senhora e o Menino Jesus). No sorriso da Mona Lisa e no facto da idade de Santa Ana e da filha, Nossa Senhora, parecerem iguais, encontra fonte de explanação: o drama associado à rejeição da mãe (já que Leonardo, filho de uma relação irregular, foi viver com o pai e com a madrasta, uma segunda mãe), as memórias mais recônditas do pintor em que um abutre agitava a sua cauda junto à boca do artista, ainda bebé, o que seria um símbolo fálico, etc. Os mais entendidos em Freud saberão melhor do que eu do que se trata. Será isto a prova evidente (a acreditar-se, nem que seja em parte, na visão freudiana) que também num quadro há sinais do nosso subconsciente?

Talvez haja mais de autobiográfico nas nossas vidas do que aquilo que se pensa. Perceber o que somos e porque somos é um caminho interessante, desafiante e proveitoso. Seja num livro, numa poesia, num quadro a óleo - ou simplesmente na forma como encaramos um slow lento.  

JdB 

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