29 julho 2014

Duas Últimas

Domingo jantei com um amigo caçador. Diz-me, e eu acredito, que gosta muito de animais. Tem uma cadela à qual se afeiçoou e que, no fim previsível da sua vida (do bicho...), trata com um desvelo inexcedível. Não obstante, quase todos os anos vai a África à caça grossa. Mata búfalos e animais quejandos, vê-os a serem esventrados (não sei se a expressão é esta) quando o tiro não atinge os pontos vitais certos. 

Eu sou relativamente piegas com o sofrimento dos animais. Nunca cacei, nunca matei um animal com um tamanho superior ao de um rato pequeno. Não obstante, gosto de corridas de touros e, se o animal demora a morrer, cambaleia golfando sangue ou tem que ser descabellado, não viro a cara, tomando atenção a tudo sem o menor sentimento de angústia, pena ou incómodo. 

Sábado fui a um casamento. A seguir ao jantar - óptimo por sinal - dançou-se longamente, o que é hábito nestas festas hoje em dia. Terminado o irritante Danúbio Azul com que noivos e pais abrem o baile, uma mole de gente atira-se à pista a pular e a gritar, a agitar freneticamente os braços e, nalguns casos mais preocupantes, o corpo todo, invadindo espaços alheios que não estão definidos. São dezenas de pessoas a cantar uma música cuja letra nem sempre percebem integralmente - talvez mesmo palavras cujo significado não descortinam. Mas, apesar dessa aparente incompreensão, cantam, seguem coreografias, olham uns para os outros, afastam-se e aproximam-se, provocam ou atravessam corpos com olhares vidrados de alegria como se quisessem soltar o diabo do corpo, como se a catarse dos dias difíceis se fizesse ali, ao som das Doce ou dos Village People. 

Chegado a este ponto do post, haverá quem se questione o que têm em comum a caça, os toiros e a dança dos tempos modernos. Domingo, em conversa sobre o tema da caça e das corridas com o meu amigo caçador, falávamos de uma certa ancestralidade bárbara que existe dentro de nós - dos tempos, seguramente, em que o homem da caverna caçava para sobreviver -  que, não obstante as festas que fazemos aos animais que nos estão mais próximos, nos deixa relativamente indiferentes ao sofrimento de outras bestas. Conseguimos encontrar na dança um paralelismo, ainda que muito remoto? A forma como dançamos hoje em dia revela também uma certa ancestralidade de milhares de anos? Haverá qualquer coisa antiga, muito antiga, mesmo, no mais fundo de nós que nos faz papaguear palavras, frases, gritar com um ar de satisfação alucinada para, com isso, atingir um êxtase de felicidade?

Deixo-vos com música que arrebata multidões, mesmo que no remanso do lar as consideremos menores.

JdB





1 comentário:

Anónimo disse...

Insensibilidade é insensibilidade para tudo.
Não existe insensibilidade para o sofrimento do touro na arena mas sensibilidade para o sofrimento de outros animais.
Assim como não existe insensibilidade para o sofrimento de seres humanos, quando o sofrimento de milhões de animais que o ser humano utiliza da forma mais cruel para toda a espécie de fins nos deixa indiferentes.
E finalmente não existe sensibilidade para animais e seres humanos se poluímos, destruímos, edificamos, queimamos, saqueamos e transformamos a Terra numa enorme lixeira à escala planetária.
Haja coerência.
É porque a nossa sensibilidade é compartimentalizada que o mundo está na desolação que vemos.
v

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