The Death of the Virgin, 1603 by Caravaggio |
Talvez não haja no mundo, dentro da minha faixa etária, pessoa que repita tanto esta frase irritante como eu: sou do tempo em que... No entanto, em abono de alguma verdade, devo dizer que nem sempre a frase é saudosista. Tanto posso dizer sou do tempo em que não se dançava com uma senhora aa fumar e, com isso estar a fazer um juízo de valor estético, como posso afirmar que sou do tempo em que os velórios duravam uma noite inteira, e com isso revelar um hábito antigo e desconfortável.
Porque tenho a idade que tenho, e porque a vida do ser humano é finita, já cumpri uma certa dose de velórios, fosse de gente que me era mais próxima e com cujo desaparecimento sofri, fosse de gente que me era mais distante - ou que nem conhecia sequer. É natural, portanto, que compare o que eram os velórios de há 40 anos com o que são os velórios de hoje. Faço-o por uma questão sociológica apenas, não me habita um módico de morbidez.
A sensação que tenho é que há 40 anos o centro do velório era a pessoa falecida. Estava-se uma noite inteira de volta do caixão, rezando e acompanhando a família mais próxima. Uma noite inteira desconfortável, pesada, mais ou menos carpida. Hoje, o centro do velório não é a pessoa falecida. São os vivos e em grande parte do tempo tudo se resume à pergunta: a que horas é a missa? O grosso das pessoas surge em cima da hora da cerimónia e sai quando ela acaba. O que significa isto? Não sei, mas denota talvez uma certa estranheza, como se o velório não fosse para acompanhar os vivos, porque os mortos já estão bem entregues. Hoje o velório é feito de costas voltadas para a pessoa falecida, aqui e ali com uma nota de desrespeito não propositado, mas que reflecte uma realidade: a ligeireza da cerimónia, ou apenas o desejo de ligeireza da cerimónia. As pessoas falam alto, riem, contam histórias. É, tantas vezes (e sei bem o que digo) uma oportunidade para vermos pessoas ausentes do nosso dia a dia - família, amigos antigos. Como eu costumo dizer muitas vezes a tanta gente - e talvez isso já revele algo - temos de organizar um velório sem morto...
Entre a morte de uma pessoa e o seu enterro podem passar pouco mais de 24 horas. O corpo pode estar numa capela mortuária pouco mais de 12, sendo que as 8 horas da noite passa sozinho. De facto, um velório tornou-se uma maçada, uma coisa deprimente, pesada, que queremos despachar o mais cedo possível. As condolências vêm via sms e já deve haver um símbolo qualquer que represente a frase os meus sentidos pêsames ou, numa fórmula talvez brasileira, creia que lamento profundamente. Significa isto menos amizade pelos que partem ou pelos que ficam? Não, isto é apenas um reflexo das vidas ocupadas (e como dizia alguém, baptizados e velórios sempre foram coisa de mulheres) da necessidade de ligeireza, do horror ao que não funciona (o defunto), ao que não é bonito ou divertido.
Não sei, relativamente a este tema específico, se diga sou do tempo em que... com um toque de tristeza ou de alívio. Sei que não queria os velórios de antigamente. Mas arriscamo-nos a aligeirar demasiado as coisas, e não sei se isso é bom. Mas também não sei dizer porque é mau...
JdB
2 comentários:
Objecto descartável...como qualquer outro que não é mais útil.
Bem dentro do espírito da sociedade materialista actual.
Será que daqui a 20 anos ainda haverá velórios? Sarabi
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