13 julho 2016

Dos velórios

The Death of the Virgin, 1603 by Caravaggio

Talvez não haja no mundo, dentro da minha faixa etária, pessoa que repita tanto esta frase irritante como eu: sou do tempo em que...  No entanto, em abono de alguma verdade, devo dizer que nem sempre a frase é saudosista. Tanto posso dizer sou do tempo em que não se dançava com uma senhora aa fumar e, com isso estar a fazer um juízo de valor estético, como posso afirmar que sou do tempo em que os velórios duravam uma noite inteira, e com isso revelar um hábito antigo e desconfortável. 

Porque tenho a idade que tenho, e porque a vida do ser humano é finita, já cumpri uma certa dose de velórios, fosse de gente que me era mais próxima e com cujo desaparecimento sofri, fosse de gente que me era mais distante - ou que nem conhecia sequer. É natural, portanto, que compare o que eram os velórios de há 40 anos com o que são os velórios de hoje. Faço-o por uma questão sociológica apenas, não me habita um módico de morbidez.

A sensação que tenho é que há 40 anos o centro do velório era a pessoa falecida. Estava-se uma noite inteira de volta do caixão, rezando e acompanhando a família mais próxima. Uma noite inteira desconfortável, pesada, mais ou menos carpida. Hoje, o centro do velório não é a pessoa falecida. São os vivos e em grande parte do tempo tudo se resume à pergunta: a que horas é a missa? O grosso das pessoas surge em cima da hora da cerimónia e sai quando ela acaba. O que significa isto? Não sei, mas denota talvez uma certa estranheza, como se o velório não fosse para acompanhar os vivos, porque os mortos já estão bem entregues. Hoje o velório é feito de costas voltadas para a pessoa falecida, aqui e ali com uma nota de desrespeito não propositado, mas que reflecte uma realidade: a ligeireza da cerimónia, ou apenas o desejo de ligeireza da cerimónia. As pessoas falam alto, riem, contam histórias. É, tantas vezes (e sei bem o que digo) uma oportunidade para vermos pessoas ausentes do nosso dia a dia - família, amigos antigos. Como eu costumo dizer muitas vezes a tanta gente - e talvez isso já revele algo - temos de organizar um velório sem morto...

Entre a morte de uma pessoa e o seu enterro podem passar pouco mais de 24 horas. O corpo pode estar numa capela mortuária pouco mais de 12, sendo que as 8 horas da noite passa sozinho. De facto, um velório tornou-se uma maçada, uma coisa deprimente, pesada, que queremos despachar o mais cedo possível. As condolências vêm via sms e já deve haver um símbolo qualquer que represente a frase os meus sentidos pêsames ou, numa fórmula talvez brasileira, creia que lamento profundamente. Significa isto menos amizade pelos que partem ou pelos que ficam? Não, isto é apenas um reflexo das vidas ocupadas (e como dizia alguém, baptizados e velórios sempre foram coisa de mulheres) da necessidade de ligeireza, do horror ao que não funciona (o defunto), ao que não é bonito ou divertido. 

Não sei, relativamente a este tema específico, se diga sou do tempo em que... com um toque de tristeza ou de alívio. Sei que não queria os velórios de antigamente. Mas arriscamo-nos a aligeirar demasiado as coisas, e não sei se isso é bom. Mas também não sei dizer porque é mau...

JdB

2 comentários:

Anónimo disse...


Objecto descartável...como qualquer outro que não é mais útil.
Bem dentro do espírito da sociedade materialista actual.

Anónimo disse...

Será que daqui a 20 anos ainda haverá velórios? Sarabi

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