29 julho 2016

Textos dos dias que correm

Rabino Abraham Skorka escreve no jornal do Vaticano sobre silêncio do papa Francisco em Auschwitz

Na nossa última conversa o papa Francisco explicou-me que na sua visita a Auschwitz escolheu exprimir-se através do silêncio. Talvez porque tudo aquilo que tinha a dizer já o tinha dito na sua mensagem ao Yad Vashem, em Jerusalém, e nas palavras que trocámos no nosso encontro em Buenos Aires, e depois retomadas no livro "O céu e a terra" (2010). O arcebispo de Buenos Aires afirmava: «A "Shoah" é um  genocídio como os outros genocídios do século XX, mas tem uma particularidade. Não pretendo dizer que é de primeira importância enquanto os outros são de importância secundária, mas há uma particularidade, uma construção idolátrica contra o povo judeu. A raça pura e o ser superior são os ídolos sobre os quais se constitui o nazismo. Não é só um problema geopolítico, mas existe também uma questão religiosa e cultural. E cada judeu que era morto era uma bofetada ao Deus vivo em nome dos ídolos».

Bergoglio pensa que, no próprio lugar do massacre, as suas palavras seriam demasiado redutoras para exprimir as sensações que o estão já a impregnar só com o pensamento da sua presença lá. No livro "L'Exil de la Parole" ("O Exílio da Palavra"), André Neher diz-nos: «Auschwitz é sobretudo silêncio. Isto é indubitavelmente melhor compreendido pelos poetas que pelos filósofos, porque é o silêncio a dominá-los assim que dizem "Auschwitz"». Um deles, Uri Zvi Greenberg, procurando um só termo para exprimir a característica que distingue os mártires de Auschwitz no tempo e na eternidade, escolhe a palavra silêncio: os mártires de Auschwitz são os «mártires do silêncio» ("Kedohsei Dumiah"). Foi este o título que o poeta deu a uma poesia em memória da sua mãe e do seu pai mortos em Auschwitz.

O texto do Levítico conta-nos que Aarão se cala após a morte dos seus dois filhos (10,3). Por outro lado, no livro de Job é-nos dito que os seus fiéis amigos ficaram junto a ele durante sete dias sem lhe dirigir uma palavra (2, 13), respeitando com o silêncio o do amigo em sofrimento. Na dor, diz o texto das Lamentações (3, 28), o homem deve sentar-se e permanecer em silêncio. O silêncio deve exprimir-se muitas vezes, como nos episódios bíblicos mencionados, esse silêncio que transcende a palavra. Quando a dor é grande o grito permanece sufocado na garganta.

«Como em outros lugares que visitei, onde foram cometidos atos horríveis», confiou-me o meu amigo, «também neste lugar desejo exprimir-me com o silêncio. Rezar e sentir, chorar se Deus me abençoar com o derramar de lágrimas, sem dizer uma palavra, é isto que devo fazer em Auschwitz».

Escutando este seu propósito, voltou à minha mente a oração de Ana, mãe de Samuel. «Moviam-se apenas os lábios, mas a voz não se ouvia» (1 Samuel 1, 13). O sábio rabino Hamnuna, segundo o Talmude (Berakhot 31, a), ensinava que da descrição da oração de Ana podem inferir-se coisas muito importantes sobre como orar. Do tom tranquilo da sua oração deve-se concluir, segundo o sábio, que aquele que reza não deve elevar demasiadamente a própria voz. Porque quando alguém reza deve escutar ao mesmo tempo o que os seus lábios proferem e o que vem do seu coração.

Como diz o livro dos Salmos (19, 4), os céus e os seus astros testemunham a grandeza do seu Criador, mas a sua voz não pode ser ouvida. E no primeiro livro dos Reis (1, 19-12) lê-se que Elias apercebe-se da voz do Eterno como um murmúrio do silêncio. Antes da aparição daquela voz, o profeta ouviu um vento fortíssimo, um terramoto e um grande fogo, mas Deus revelou-se com uma voz que mal perturbava o silêncio. Diante do olhar do ser sensível, o silêncio dos astros e a sua mensagem testemunham a grandeza de Deus quanto as grandes, rumorosas e dramáticas manifestações da natureza, se não mais.

Numa "haggadah" do Talmude (Menachot 29 b) conta-se que Deus antecipou o futuro a Moisés, mostrando-lhe a grandeza e a dramática e cruel morte do rabi Akiva, o maior sábio do Talmude, às mãos dos romanos. Perante a angustiante pergunta de Moisés ao Eterno - é esta a recompensa pelo estudo e a dedicação à Torá? -, Deus responde: «Cala-te, assim se elevou o pensamento diante de mim». Há coisas imperscrutáveis, que não é possível exprimir por palavras.

Bergoglio vai a Auschwitz para rezar. Para se deter diante do Criador a chorar por aquilo que o homem fez ao seu próximo naquele lugar.

Em Auschwitz o homem pôs-se a calar, por assim dizer, a voz de Deus na realidade humana através da consumação de atos nunca antes vistos. Os nazis não tinham necessidade de construir uma torre que chegasse aos céus para desafiar Deus, como tinha acontecido séculos antes em Babel. Escolheram aniquilar o povo que fez o pacto com Ele para eliminar a sua presença da realidade humana. Ali, onde a ignomínia se pôs a calar as vozes dos justos e a de Deus, o papa escolhe o silêncio para honrar quer as vítimas quer o Criador. O seu pedido a Deus para poder chorar naquele lugar difere de quanto pede o salmista (51, 17) - «Senhor, abri os meus lábios e a minha boca proclame o teu louvor? -, mas assemelha-se ao de Jeremias (8, 23), o profeta que predisse e assistiu à destruição da Judeia e de Jerusalém: «Quem fará da minha cabeça uma fonte de água, dos meus olhos uma fonte de lágrimas, para que chore dia e noite as mortes da filha do meu povo?».

Com a ajuda do Eterno, estarei fisicamente próximo dele nesse momento. A "Shoah" e o seu significado eram um tema recorrente nas nossa conversas em Buenos Aires, tão distante geograficamente de Auschwitz mas tão próxima na nossa dor e no nosso sofrimento.

Título do texto de Abraham Skorka: "O silêncio de Auschwitz"

Abraham Skorka 
In "L'Osservatore Romano", 27.6.2016 
Trad.: Rui Jorge Martins 

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