18 julho 2016

Textos dos dias que correm

Job e a amizade

Um olhar desatento pode nada captar de comum entre o drama pré-trágico de Job, como narrado nas Sagradas Escrituras, e a aparentemente burguesa avant la lettre teoria da amizade de Aristóteles, como exposta sobretudo na sua Ética, dedicada a seu filho Nicómaco.

Trata-se, mesmo, de um olhar desatento, pois, um olhar que queira penetrar na radicalidade da proposta aristotélica, como posta no nível mais elevado da amizade, em que esta coincide com a perfeição de um ato de mútuo e oblativo amor entre dois seres humanos semelhantes, perceberá que a ninguém melhor do que a Job, na relação com os diferentes seres humanos que o brindam com a sua presença bem como com o próprio Deus, se pode tal proposta aplicar.

A situação de Job, ao longo de quase toda a narrativa, é a de alguém que não tem amigos. E, no entanto, os seres humanos que sucessivamente nos são apresentados são-no como se de amigos se tratasse. O mesmo sucede com a primeira entidade humana a manifestar-se, a sua Mulher. No que diz respeito a Deus, há uma propositada ambiguidade, pois, não há uma, mas duas manifestações de Deus, como se de dois deuses se tratasse, um ainda demasiado humano, o outro, digno da designação e, sobretudo, como veremos, da amizade com Job, pois é da possibilidade da amizade entre Deus e o ser humano que se trata (com o devido escândalo de Aristóteles, para quem tal não era pensável).

Com Job, no Livro de Job, está em causa a possibilidade de amor recíproco entre seres espirituais, especialmente entre o ser humano e Deus. Mas está também em causa precisamente o que é específico da amizade segundo Aristóteles, isto é, a grandeza do ato de amor na sua reciprocidade: se Deus ama o ser humano com divina grandeza, isto é, infinitamente, amará o ser humano a Deus de forma semelhante?

O que vai ser exigido de Job é que ame Deus infinitamente. Como é tal possível, sendo Job finito? Obrigando que a circunstância em que Job se situa o leve a amar numa dinâmica e cinese sem fim assinalável, como se se lhe pedisse que infinitamente afirmasse o seu amor por Deus. Fazendo-o, situar-se-ia ao nível da infinitude não em ato, mas em atualização, que é o máximo absoluto que se pode pedir a algo que não é infinito em ato.

Deste modo, o acrisolamento de Job serve a finalidade – através de um drama terrível, mas que é modelo do preço possível de um amor sem limite – de expandir a sua capacidade de amar infinitamente. E de o fazer no absoluto da solidão, sem o que isso que é a oblatividade pura da amizade não é possível, pois, havendo recompensa, qualquer, pode-se sempre estar no nível da amizade interesseira ou prazenteira.

É nestes níveis, sobretudo no primeiro, que se situam os falsos amigos e a falsa amiga/mulher. Esta parece, além de mais, sentir um profundo desconforto estético pela presença do marido em estado de decomposição física. Se não lhe serve já como coisa útil, também não lhe serve como coisa agradável: mais vale que seja aniquilado.

Aos falsos-amigos, interessa apenas a relação contabilística/interesseira entre o bem feito segundo as leis, sejam elas quais forem, e as mecânicas recompensas, sem, por um momento, por um ato de puro amor ao suposto amigo, se interrogarem se, no drama presente, não há uma outra lógica. Mas, para tal, é preciso amar sem métrica.

Não há verdadeiro amor em quase toda a narrativa, salvo o absoluto ato de amor que Job sempre é para com Deus, com quem se relaciona como um verdadeiro amigo, a quem convoca como se convoca um amigo, o derradeiro amigo, dado que todos os outros se revelaram traidores.

É Deus amigo de Job?
De início, não.

Revela-se como o pior dos falsos amigos, lançando o sal do seu apregoado poder esmagador sobre o já quase esmagado Job. Mas este, amigo fiel – e Job é, como Abraão, paradigma máximo de fidelidade –, mantém o seu amor por Deus, amigo que se revela, também ele, infiel: infiel a Job, infiel à sua relação, infiel ao próprio Deus, garante da autenticidade do amor de Job.

Ou será que é Job que, neste penúltimo ato do drama, é garante de tudo, inclusive da possibilidade de se poder, ainda, crer em algo como um Deus que mereça tal nome?

Na economia – tremendamente sábia – da narração, assim é: a fidelidade do amor de Job, que sempre ama Deus, mesmo quando este parece não amar Job, permite que o drama cesse, que haja um corte na perversidade do teste feito precisamente à humana capacidade de amar numa relação de semelhança.

Resistindo o amor de Job, quer dizer, mantendo-se a amizade entre Job e Deus, este nada mais tem a fazer do que reconhecer a grandeza de Job. Mas esta grandeza não é reconhecida de qualquer modo: Deus reconhece Job não como um inferior, mas, porque são verdadeiramente amigos, de uma amizade forjada em sangue, suor e lágrimas, como semelhante.

O amor de Job e de Deus, na relação que os une, é semelhante. É nesta capacidade e neste ato que o ser humano é imagem e semelhança de Deus. É esta mesma capacidade infinita de o ser humano amar que é santificada quando Deus vem à carne tornar real o que Job fora como literatura, como mito.

Job é a mostração teórica de como Deus e o ser humano podem partilhar um semelhante amor; Cristo é a possibilidade de se ser amigo de Deus na forma da carne.

Aristóteles e o Areópago de Atenas tal nunca aceitariam enquanto realidades históricas. Mas, na cidade do espírito, já releram todos os mitos e todas as filosofias a uma outra luz, precisamente essa que une Job a Deus.


Américo Pereira 
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas 

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