Em maio, num blog(1) com um noticiário diferente e bastante internacional, veio citado um artigo do «La Stampa», que recuava a 1969 para citar a profecia luminosa do então teólogo Joseph Ratzinger (a partir de 2005 – Papa Bento XVI) sobre a Igreja.
Uma profecia impressionante, o mais não seja pela acutilância e coragem reveladas, ao afrontar com clareza e zero de atenuantes o processo de regressão da Igreja, abandonando – talvez para sempre – o lugar de referência na cultura ocidental. Espera-a ficar reduzida a um grupúsculo ignorado e obscuro numa sociedade hedonista e fixada no sucesso tecnológico.
Embora o diagnóstico não se aplique ainda a toda a Europa, adivinha-se-lhe o realismo no prazo de umas décadas. Basta ver as sociedades mais ricas e desenvolvidas do Ocidente para se perceber como é já o retrato dessas comunidades satisfeitas e fechadas na sua super-abundância. Qualquer país nórdico ou uma Suíça estão muito próximas do descritivo traçado por Ratzinger e por outro visionário da história – o realizador Ingmar Bergman, por exemplo, no filme «O Silêncio» (1963). O sueco pretendia, com aquela descida a um mundo desesperado, cruel e em autodestruição, caracterizar o que chamou de «o inferno na terra — o meu inferno». Tudo ali é postiço e calculista, evidenciando-se a corrosão social na traição entre irmãs, onde a doente é abandonada à sua sorte. Todos à deriva, egocêntricos, venais, descontrolados, reduzidos a uma animalidade que perverte as relações afectivas mais nobres, como a maternidade e a fraternidade. À sua maneira, Bergman espelha no ecrã esse universo descrito por Ratzinger, em que os humanos estão enclausurados numa solidão letal, onde apenas o ódio e a morte florescem animadamente. Dantesco, até uma luz minúscula e firme sobressair na escuridão espessa do desespero geral, vinda do pequeno grupo de crentes. Os tais insignificantes, encarados como párias de uma sociedade altamente competitiva. Esgotada na sua esterilidade, essa comunidade descobrirá, então, na minoria com fé, a Esperança e a vitalidade por que anseia, no seu íntimo.
Ou seja: diferentemente do cineasta, o diagnóstico inicialmente arrasador do jovem teólogo alemão antevê também um final feliz e purificador. Talvez mais próximo da primeira era da Igreja, quando um bando de pescadores incultos e pobres teve o topete de se arvorar em profetas de uma Boa Nova, irritando a elite judaica e incomodando as autoridades romanas, fartas dos típicos mobilizadores do povo, normalmente incendiários revolucionários, ao estilo de Barrabás, que pululavam por toda a Judeia.
No grande ecrã, os Monty Python (ex: «A Vida de Brian») recriam com um humor certeiro o ambiente subversivo que perturbava tanto a pax romana, no Médio Oriente. Claro que a dúzia de pescadores ignorantes mais parecia a gente errada, à hora errada, no lugar errado. Próximo do anedótico, o que torna incompreensível, depois, não ter tudo dado errado. Ainda por cima, também lhes competia deixarem uns escritos para a posteridade, eles que eram quase todos analfabetos. Também aqui, Ratzinger ajuda a desfazer o paradoxo.
Bem conhecedor da História, o teólogo alemão compara os tempos futuros da Igreja ao Iluminismo que, no seu experimentalismo racionalista, derivou para a Revolução Francesa e para os Despotismos ditos Iluminados, como o de Catarina II da Rússia, que mantinha um império sustentado por trabalho escravo (eram milhões os servos que aravam os campos russos), a par de uma minoria de privilegiados. Em termos políticos, qual cereja no bolo, defendia uma concepção de poder esclarecedora em matéria de autoritarismo: A Rússia é demasiado grande para ter mais do que um líder. Recorde-se que Catarina II era uma das governantes mais admiradas pelos filósofos iluministas, por estranho que isso nos possa soar hoje.
O jornalista italiano M.Bardazzi relembra, em 2013, a profecia anunciada numa série de programas radiofónicos emitidos na Alemanha, em 1969 e, mais tarde, compilados no livro «Faith and the Future».
Segue esse artigo clarificador sobre o futuro e sobre o misterioso passado de uma Igreja feita, sobretudo, por gente incapaz para a missão que lhe é confiada:
«A PROFECIA ESQUECIDA DE RATZINGER SOBRE O FUTURO DA IGREJA
Encontro nos Jornais este artigo que se refere a um discurso radiofónico pronunciado pelo Papa Bento XVI no longínquo ano de 1969. Penso que ilumine o que se vive na Igreja neste período.
Uma Igreja redimensionada, com muito menos seguidores, obrigada até a abandonar parte dos lugares de culto construídos ao longo dos séculos. Uma Igreja católica de minoria, pouco influente nas escolhas políticas, socialmente irrelevante, humilhada e obrigada a “repartir das origens”.
Mas também uma Igreja que, através desta “enorme agitação”, reencontrar-se-á e renascerá “mais simplificada e mais espiritual”. É a profecia sobre o futuro do cristianismo pronunciada há mais de 40 anos por um jovem teólogo da Baviera, Joseph Ratzinger.
Redescobri-la hoje ajuda talvez a descobrir uma ulterior chave de leitura para decifrar a renuncia de Bento XVI, porque reconduz o gesto surpreendente de Ratzinger ao leito da sua leitura da história.
Em cinco discursos radiofónicos pouco conhecidos - voltados a publicar há um tempo pela Ignatius Press no volume “Faith and the Future”- o futuro Papa naquele ano complexo de 1969 traçava a sua visão sobre o futuro do homem e da Igreja. É sobretudo a ultima lição, lida no dia de natal aos microfones da “Hessian Rundfunk”, a assumir um tom de profecia. Ratzinger dizia-se convencido de que a Igreja estivesse a viver uma época análoga àquela que se seguiu ao Iluminismo e à Revolução Francesa. “ Estamos num enorme ponto de mudança - explicava - na evolução do género humano. Um momento a respeito do qual a passagem da Idade Media aos tempos modernos pareça quase insignificante”. O Professor Ratzinger comparava a era actual com aquela do Papa Pio VI, raptado pelas forças da Republica Francesa e morto na prisão em 1799. A Igreja tinha-se encontrado então diante de uma força que pretendia extingui-la para sempre, tinha visto os seus bens confiscados e as ordens religiosas dissolvidas.
Uma condição não muito diferente, explicava, poderia esperar a Igreja de hoje, minada segundo Ratzinger pela tentação de reduzir os padres a “assistentes sociais” e a própria obra a mera presença política. “ Da crise presente - afirmava - emergirá uma Igreja que terá perdido muito. Tornar-se-á pequena e deverá repartir mais ou menos dos inícios. Não estará já em condições de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Com a diminuição dos seus fieis perderá também grande parte dos privilégios sociais”. Repartirá de pequenos grupos, de movimentos e de uma minoria que voltará a pôr a fé no centro da experiência. “Será uma Igreja mais espiritual, que não se arrogará um mandato politico flirtando ora com a Esquerda ora com a Direita. Será pobre e tornar-se-á a Igreja dos indigentes”.
Aquilo que Ratzinger delineava era “um processo longo, mas quando toda a aflição tiver passado, emergirá um grande poder de uma Igreja mais espiritual e simplificada”. Nesse ponto os homens descobrirão que estão a habitar um mundo de “indiscritível solidão” e tendo perdido de vista Deus, “perceberão o horror da sua pobreza”.
Então, e só então, conclui Ratzinger, verão “aquele pequeno rebanho de crentes como qualquer coisa de totalmente novo: descobri-lo-ão como uma esperança para si próprios, a resposta que tinham sempre procurado em segredo.»
Marco Bardazzi | La Stampa | 2013.02.18
Acentuando o mérito dos finais felizes, apetece evocar o autor do Tintim, que concluía sempre com a conhecida fórmula: Tudo está bem, quando acaba bem. A confirmar-se o provável diagnóstico de Ratzinger, é reconfortante abrir-se para um desfecho tão positivo, onde se recupera a simplicidade e a autenticidade da mensagem cristã.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) http://o-povo.blogspot.pt/
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