26 fevereiro 2019

Da privacidade e do povo Sakalava

Há uma linha quase imperceptível que une as redes sociais ao povo Sakalava, de Madagáscar: essa linha chama-se privacidade - e ambos (tribo e redes) estão do mesmo lado da barricada, o lado que diz não à privacidade, ainda que por motivos diferentes. 

Para os Sakalava, dizem-me, as cercas são desaprovadas, as portas são um tabu e as pessoas passam a maior parte do tempo fora de casa. Nesta tribo, secretismo e separação indicam, no mínimo, falta de generosidade. E se alguém pretende manter-se escondido e quieto num espaço não público é porque está a tramar alguma. A escuta, esse hábito que tem tanto de pernicioso como de interessante, faz parte do instinto de sobrevivência desta gente. 

As redes sociais mataram, penso já o ter dito de forma maçadora neste estabelecimento, uma certa de ideia de privacidade. Mas foram mais longe no seu furor destrutivo: a morte da privacidade foi acompanhada pela morte de um certo interesse pela vida do próximo. Hoje subsiste a curiosidade, que é um parente pobre, e quiçá bastardo, do interesse. E desapareceu, sobretudo, o conceito de interesse militante, aquele que nos leva a perguntar, a querer saber, a dar tempo para que uma resposta nos chegue aos ouvidos. Hoje tudo é disponibilizado, nada é indagado. E a ideia de que ser é ser percebido é substituída pela ideia de que mostrar é ser percebido. Hoje tudo chega por via de um telefone: quem veste o quê, quem foi pai de quem, que restaurantes estão na moda, que cursos estamos a frequentar, o que jantámos na semana passada ou onde estivemos ontem - ou onde estamos naquele preciso instante. Já não existe a pergunta onde foste? porque se presume que não estando nas redes sociais não tem interesse. Ou não tem existência, que é o mesmo.  

O problema, obviamente, não está nas redes sociais, mas na utilização que lhes damos. O telemóvel é um artigo pessoal, tal como um sapato. Mas se este não impede a conversação, aquele sim. No telemóvel está tudo - e o que não está lá não tem valência utilitária, não justifica uma atenção. O isolamento promovido pela utilização (quase) obsessiva do telemóvel para consultar o facebook, o instagram, o whatsapp, impede a conversa, e nesse afundamento de uma arte milenar condena-se também o ponto de interrogação, esse pequenino sinal gráfico que abre as portas ao comércio entre as pessoas. Não perguntamos, porque temos informação crucial (e virtual) que chegue e, com isso - ou por causa disso - matamos mais um pouco das competências sociais que nos vão restando. Sabemos tudo de toda a gente, mas não perguntamos nada a ninguém. Ao contrário do povo Sakalava, a nossa falta de privacidade destrói. E talvez torne obsolescente a utilização da voz como elemento de comunicação entre as pessoas.

Olhemos para a História: é verdade que algo se perdeu quando a vida dos Homens começou a fazer-se em casas com paredes e portas fechadas. Ouvirmo-nos uns aos outros, sabermos que nós próprios somos ouvidos pode ser uma fonte de conforto, mais do que de ansiedade; de confiança, mais do que de medo. Assim o reconheceu uma habitante de Londres que, no final do séc. XIX, reportava todos os sons que ouvia no seu prédio: a senhora do primeiro andar que a horas certas lava o fogão, o senhor do segundo andar que pede chá e uma torrada, a criança que chora mais acima ou as conversas das manhãs preguiçosas. O som ambiente pode ser reconfortante, pode dar-nos a sensação de não estarmos sozinhos. Porém, ao contrário desta londrina que identificava as rotinas do prédio pelos sons humanamente audíveis, a modernidade tecnológica eliminou o som que permitia o equilíbrio fino entre privacidade e ausência de. A privacidade desapareceu, mas cada um vive barricado no seu forte insonoro. Identificamos as rotinas sem ver nem ouvir.

Num certo sentido, entre o nosso mundo e o do povo Sakalava talvez não haja diferenças substanciais. Para a tribo malgaxe a ausência de privacidade significava a manutenção da vida; para o mundo ocidental talvez seja, pelo contrário, o fim de uma certa vida.  

JdB

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