27 fevereiro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

O CINEMA ESCOLHEU-O POR MUSICAR BEM O SOM DA REALIDADE – ENNIO MORRICONE 

Há 90, nasceu em Roma o grande músico Ennio Morricone, que se considera – antes de mais e acima de tudo – «cidadão romano» («civis romanus sum»), sublinhando-o como forma de estar na vida. É no sossego do escritório que escrevinha as partituras, quase sem ver vivalma até completar a empreitada. Só se ausenta da Cidade Eterna para cumprir obrigações no estrangeiro. De resto, adora viver com a sua «mentora» (sic) e mulher, num palacete junto à magnífica Praça de Espanha e Trinitá dei Monti.

Leitura atenta de uma partitura no seu palacete romano. O piano domina um enorme compartimento de estilo barroco, mas é sentado à secretária que compõe com sofreguidão e disciplina férrea, aproveitando as manhãs. Em mais novo, respondia à encomenda para um filme, numa semana. Agora, já precisa de um mês.

Embora seja conhecido pela produção prolífica, conseguindo a proeza de compor para um filme no espaço de uma semana, diz que comparado com Mozart ou Bach perde em toda a linha, incluindo no ritmo de trabalho frenético. 

Morricone teve a inteligência e ousadia de trazer a realidade para a música: «Eu gostava de trabalhar o som da realidade, o que ouvimos todos os dias. Esses ruídos que nos cercam têm a sua própria música e [por isso, os realizadores] poderiam obter outra [banda sonora] comigo.» Aliás, precisa que escreve música para o cinema, e não tanto ‘bandas sonoras’. 

O gosto pela música tinha-lhe sido incutido pelo pai, que o ensinara a ler as pautas e lhe oferecera uma trompete com a responsabilidade de quem estava a passar o testemunho à nova geração. O momento mereceu uma declaração solene: «Criei a minha família com este instrumento. Tu farás o mesmo com a tua». Aos 12, Ennio entrou no Conservatório de Santa Cecília, para dali sair formado no instrumento oferecido na infância, além de composição e música coral. O piano tornou-se no segundo instrumento da sua expressão musical. 

Compositores de referência? Não se fixa em nomes, por ter ficado vacinado pela paixão de um colega talentoso, cuja criatividade acabou tolhida pelo fascínio que nutria pelo génio renascentista Giovanni de Palestrina. Ennio, ao invés, confessa-se apreciador de muitos e de diferentes épocas, incluindo o rock (caso claro com os Pink Floyd), mas evitou apaixonar-se por uma figura maior da história. Como típico italiano, cultivou um estilo muito pessoal e poucas vezes cedeu às alterações pedidas pelos que lhe encomendavam as obras. No cinema, os exemplos multiplicaram-se, a começar pelo realizador amigo que o lançou na Sétima Arte – Sergio Leone.       

Tinham-se conhecido nos bancos da escola. Depois de Leone ouvir os primeiros êxitos de Ennio, passados no media mais popular da época – a rádio – e de assistir ao primeiro filme que musicara, não hesitou em desafiá-lo para compor as bandas sonoras dos seus western spaghetti. Após dois, de enorme sucesso, Morricone pediu um interregno, porque temia tornar-se repetitivo. Mais tarde, retomou a parceria, que se estendeu ao famoso «Era uma vez no Oeste» (1968) e ao premiado «Era uma vez na América» (1984).

Em 1968, a introdução de apitos e de outros sons recriaram com uma nitidez invulgar o ambiente do faroeste. A ponto de Leone reconfigurar parcelas do filme segundo a sonoridade extraordinária de Morricone. Por exemplo, na abertura, em que um bando de pistoleiros espera o homem da gaita (Charles Bronson) para o assassinar, Leone mudou a posição da câmara e todo o plano da cena. Com a ajuda da música de Ennio e do excelente desempenho de Eastwood, o realizador italiano acabou por revolucionar os western. Esta recriação do faroeste por Morricone consta de outra película de Sergio Leone -- «The Good, the Bad and the Ugly», interpretada pela Orquestra Sinfónica Nacional da Dinamarca: 



Pelo caminho, Morricone compôs para Bertolucci («1900»), Pasolini e outros conterrâneos, até que a fama chegou a Hollywood, que começou a bombardeá-lo de encomendas. Sucederam-se décadas de novos projectos e novos êxitos com Terence Malik, John Carpenter, Roland Joffé («A Missão», 1986), Tornatore («Cinema Paraíso», 1987), Almodóvar, Franco Zeffirelli, Brian de Palma («Os Intocáveis», 1987), Oliver Stone , Warren Beatty e, mais recentemente, Tarantino («The Hateful Eight»), que lhe valeu o primeiro Óscar de Banda Sonora (2016). Nem a géneros mais diversos se esquivou, musicando filmes de terror: «Exorcista II» (1977) e «O Enigma do Outro Mundo» de John Carpenter. Também compôs para rockers (Pet Shop Boys), para o tenor Andrea Bocceli e é referência dos Metallica, Radiohead, Bruce Springsteen, Arctic Monkeys. Os U2 dedicaram-lhe «Magnificent», do álbum «No line on the horizon».  

Até no futebol Ennio marca presença, pois é ao som do tema central de «Era uma vez no Oeste» que o Real Madrid guarda um minuto de silêncio, no Estádio de Santiago Bernabeu.


Traduzir a sua carreira em números é impressionante: compôs para mais de 500 filmes e séries de televisão, das quais 60 foram premiadas. Os galardões também se acumularam, embora Óscares só conte 2, sendo um de carreira (2007), recebido das mãos de Clint Eastwood. Somou Baftas, Leões d’Ouro, Globos de Ouro, Diapasão d’Ouro e até o Nobel da música – o Polar Music Prize – a par da islandesa Björk, em 2010:

O prémio foi criado, em 1989, pelo letrista e manager dos Abba –  Stig Anderson, para distinguir figuras que fizeram progredir a produção musical.

Tarantino apelidou-o de Mozart da actualidade: «As far as I'm concerned, he's my favorite composer. And when I say favorite composer, I don't mean movie composer, that ghetto. I'm talking about Mozart, Beethoven, Schubert. That's who I'm talking about». 

Discorrendo algumas das árias emblemáticas: uma curta-metragem pelos canais de Veneza flui ao som da ária principal de «Cinema Paraíso». Regido pelo próprio Morricone, reporta-se ao concerto decorrido a 10 de Novembro de 2007, na cidade mais oriental de Itália:



O tema maior de «Missão» é outro colosso musical, com letra escrita pela mulher:



E ainda uma dupla fantástica – Yo-Yo Ma a tocar Morricone – numa hora de música que sabe a pouco: 



Mais raro que o talento artístico, Ennio consegue também ser craque noutro campeonato, eloquente do seu carácter sólido e íntegro. Aqui entra um rosto feminino, que ele escolheu há perto de 70 anos. Logo que a conheceu, apaixonou-se por Maria Travia, que não lhe correspondeu, segundo contou ao Corriere della Sera, numa entrevista antiga [citada em espanhol(1)]: «‘Nos conocimos en Roma en el Año Santo: 1950. Era amiga de mi hermana Adriana.´ El compositor se enamoró inmediatamente de Travia, pero ella quiso esperar. Fue un cruel giro del destino [desastre de automóvel] lo que sellaría su amor para siempre.» Morricone aproveitou a longa convalescença dela, a recuperar de um acidente grave, para a conquistar: «dia a dia [à sua cabeceira], gota a gota, fiz que se apaixonasse por mim». Já diz tudo, o empenho em conquistar alguém imobilizado numa cama, semanas a fio. Não se considera um romântico, mas ligado a Maria por razões fundas, que permanecem e aguentam a passagem do tempo. Sublinha o fio condutor da sua relação, desde o casamento, a 13 de Outubro de 1956:  «No amor, como na arte, a constância é tudo. Não sei se existe amor à primeira vista ou intuições sobrenaturais. Mas sei que a consistência e a seriedade sim. E, obviamente, a lealdade.» Gradualmente, a relação do casal estendeu-se também à parceria intelectual e artística, porque Maria tem escrito as letras das árias mais conhecidas e é o primeiro crivo das suas composições. Se as chumba, Ennio descarta-as liminarmente, não sendo sempre tão dócil com a opinião de realizadores e de outros patrocinadores da sua obra. Curiosamente, Roger Waters, dos Pink Floyd, funde o retrato humano com o artístico, dizendo de Morricone: «[é] um génio, um senhor, um ser humano maravilhoso».

Os media são os primeiros a lembrar a referência maior e mais constante nos discursos de Morricone –  Maria Travia. No discurso do Óscar de 2016, repetiu o esperado: «Dedico-o à minha esposa, Maria, e minha mentora».

Aos 90, Ennio continua a inovar. Em 2019, percorrerá grandes palcos internacionais para ir ao encontro dos milhões de europeus que o conhecem das salas de cinema, à parte dos italianos, que o ouvem com regularidade em concertos regidos pelo próprio, por todo o país. Em 2011, no dia de Itália (4 de Novembro), tive a sorte de o ouvir conduzir a Orquestra Roma Sinfonietta, na Piazza del Popolo! Até a noite estrelada e morna ajudou a essa festa memorável.

A 6 de Maio, estará em Lisboa para saborearmos, junto ao Tejo, o génio que ousou preencher a sua música com realidade! O que torna ainda mais extraordinário ser tão tranquila, nostálgica e subtil, seguindo a sua fórmula preferida para enriquecer um filme: «entrar em cena silenciosamente, sem que o ouvido do espectador se aperceba e sair do mesmo modo suave e discreto.» Intui-se que aquele som lindo cruzou o coração de um grande senhor e grande artista.


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (1) Citado na revista Vanityfair (www.vanityfair.es) de 8 de Janeiro de 2019, num artigo de Mónica Parga.

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