14 fevereiro 2019

De uma ida a Paris

Estive em Paris três vezes: por volta de 1982 em prazer, por volta de 2000 em trabalho, em 2019 por motivos de voluntariado. Digamos que há uma (quase) progressão aritmética. Mais ou menos de 18 em 18 anos vou a Paris, cidade para onde olho, percebo agora, com olhos sempre diferentes: os olhos de um jovem de 24 anos, os olhos de um adulto preocupado com a carreira, os olhos tranquilos de um homem cujas ambições são moderadas. Paris é a mesma, mais ou menos (indiscutivelmente uma cidade muito bonita) mas eu não sou, e olho para tudo com um olhar diferente, talvez mais sossegado e sem preconceitos por ser capital de franceses. 

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Passamos um dia inteiro em reunião com a equipa da L'Oreal (mais precisamente da Fundação La Roche-Posay) que promoverá uma campanha que beneficiará (não financeiramente) as crianças com cancro. Falamos de tudo: de taxas de sobrevivência (80% no mundo ocidental, 20% nos países menos desenvolvidos ou pobres), de casos pessoais, de perspectivas de futuro, do estigma social da doença, da importância do contacto físico com as crianças doentes (um dos grandes objectivos da campanha). Retenho duas frases que foram projectadas num ecrã:

- a maior perda é nunca vir a saber-se como é não ser doente de cancro ou sobrevivente (de uma sobrevivente).
- Do not go where the path may lead, go instead where there is no path and leave a trail (de Ralph Waldo Emerson) [Tradução livre: não vás por onde o caminho te leva; vai antes por onde não há caminho e deixa um trilho].

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O dia de ontem é dedicado ao lançamento do projecto: uma médica, um psico-oncologista, o testemunho de dois pais, a presidente do CCI (Childhood Cancer International), pessoas da Fundação,  uma especialista em massagens, jornalistas. A ideia é explicar as virtudes das massagens a uma criança doente com cancro, não só o bem físico, mas, acima de tudo, a possibilidade de restabelecimento do contacto físico entre pais e filho doente. Explicam-nos que todos os movimentos devem ser feitos três vezes: à primeira o corpo estranha, à segunda aprende, à terceira aprecia. Bom era que tudo na nossa vida fosse isso - e por essa ordem: estranheza, a aprendizagem, gosto.

Segue-se um momento de aplicação prática entre adultos. Escolhem-se parceiros, com algum constrangimento, porque os homens não quererão ser massajados por homens e têm algum pudor em aproximar-se de uma rapariga / senhora que não conhecem. Quando dou por mim estou a apertar suavemente o braço do Anton, um russo esguio, alto, simpático e competente que estava sentado ao meu lado. Mas Anton, não obstante... Acabo a massajar e ser massajado (na base do máximo respeito) pela directora-geral da Fundação, uma quase jovem francesa, simpática e com sentido de humor.

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3ª feira é dia de jantar de confraternização e vem-me à memória os jantares das minhas reuniões internacionais: excesso de vinho para algumas pessoas, comida mais cuidada, animação, boa disposição, informações sobre as vidas pessoais, sentimento de pertença a algo comum, promessas de contactos futuros. Curiosamente, nessa noite sonhei dolorosamente com os meus últimos tempos de multinacional: ambiente tenso, secretismo, desconhecimento do futuro profissional, dependências hierárquicas inesperadas. Talvez fosse o destino a punir-me ou, quem sabe, o fraco rosé do jantar...

Ao meu lado senta-se uma jovem parisiense de 27 anos: bonita, bem arranjada, simpática, típica colaboradora recente de uma empresa do ramo da beleza pessoal. Falamos de trivialidades: de viagens, de Portugal, da (não) simpatia dos parisienses, de comida local, de onde estivemos ambos no país do outro. Digo-lhe que gosto muito de música francesa, falo-lhe do muito que eu ouvia numa determinada época. Ela sorri, orgulhosa da sua nacionalidade, e responde: gosta de música francesa? De quem, por exemplo? Mozart? Jacques Brel? Podia explicar-lhe que Mozart era austríaco e que Brel era belga, mas opto pelos petits riens. Noutra ponta da mesa, um rapaz brasileiro grande, nada apreciador de futebol e com os braços muito acima da cintura, fala alto para um telefone que não está colado à orelha. Diz-me, com os braços sempre acima da cintura, que a etiqueta manda que se coma peixe com a faca na mão esquerda. Explico-lhe que não, que não é possível. Duvida, manda-se vir uma faca de peixe. Reconhece, alegre, sempre com os braços acima da cintura.

Mozart, Brel, facas de peixe. Sou um velho.  

JdB

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