13 fevereiro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

HOMENAGEM DE UM HOMEM ÀS MULHERES MERECE FILME

Na pole position para os óscares do Melhor Filme e da Melhor Realização está «ROMA»(1), marcante e profundo em múltiplos aspectos. Ou não fosse realizado por Alfonso Cuarón, que goza de uma carreira sólida e premiada por Hollywood. Só «GRAVIDADE» valeu-lhe 7 óscares. Mas este é diferente: falado em espanhol e a tomar por cenário o México da sua infância. Tempo e lugar recuperam as memórias dos seus 10 anos, em homenagem pura, sem sentimentalismos nem hipérboles. Recorda o que é capaz por gratidão e justiça à história. Pessoal mas real, impregnada pela bondade de uma fada boa, chamada Libo e empregada de casa dos pais. Percebe-se por que lhe dedica, em película, um bom pedaço da sua vida. Pormenor: no filme, o diminutivo é mudado para Cleo. 

Ao arriscar uma reconstituição autobiográfica, Alfonso C. acarretou as dificuldades inerentes. Demorou uma década a maturá-lo e perto de um ano a desencantar a protagonista (ia desesperando), agora candidata a Melhor Actriz, apesar de ser amadora. Durante as filmagens (2016), no México, foi retardado por ataques violentos à equipa, pelo que só no Verão de 2018 estreou no Festival de Veneza. Arrecadou logo o principal Globo de Ouro. Desde então, tem somado distinções e galardões dos media e cinematográficos, sendo candidato a 10 Óscares. Neste fim-de-semana, em Londres, ganhou o melhor Bafta.

Cuarón com Libória (Libo), inspiradora do argumento. Na cerimónia dos Bafta, sublinhou a tentativa de ligar tempos e gentes de lugares distantes, fazendo do planeta a casa de toda a família humana. Na entrevista ao «The Guardian» (21-Dez-2018) confessou-se demasiado cinéfilo para se emancipar dos grandes cineastas e conseguir realizar um filme de autor, com originalidade. Disse que as melhores imagens [também está nomeado para Melhor Fotografia] são lindas porque replicam os mestres; nem tanto por mérito seu! Afinal, fez escola com Libo /Cleo… 

O título adopta a toponímia de um bairro situado a Oeste do centro histórico da capital mexicana, residência de uma burguesia com estudos e dinheiro, embrião da nova classe média emergente. Os carros têm a escala agigantada dos norte-americanos, cabendo mal nas garagens de uma cidade de dimensões mais modestas.

Mas Roma é também o caso mais expressivo dos anagramas, pois o inverso da palavra desagua no termo “amor”. Ora, este passado de Cuarón surge ferido por rupturas familiares e a turbulência correspondente, sendo em parte salvo pelo amor. Libo (ou Cleo, na película) terá sido o alicerce mais forte e subtil desse contexto familiar onde o amor melhor se deu, até ao limite.

Yalitza Aparicio no papel de Cleo e Marco Graf como Pepe. O mais novo dos irmãos usava a expressão enigmática: «Quando eu era velhinho…», sempre conjugado no pretérito imperfeito.  Fotografia de Carlos Somonte/PR

No ecrã, a trama flui num flash-back ordenado cronologicamente e caldado pela poesia do preto-e-branco, para mergulharmos numa época anterior. A câmara assume o olhar lúcido de um adulto empenhado em revisitar um tempo antigo, apenas sustentado pela memória, mas atento aos factos. Torna-se, por isso, numa viagem afectiva, que é marca d’água da memória.

O argumento centra-se em 1970/71 e na maternalidade incansável da empregada de infância. Com base nessas duas coordenadas factuais, Alfonso C. desfia uma existência de alegrias, angústias, surpresas e feridas fundas. A partir da protagonista, a história desenrola-se em círculos concêntricos, gradualmente maiores, que parte da família com quem Cleo vive, estende-se aos amigos e vizinhos, amplia-se ao país... e saberá o espectador até onde chega.

Daquela casa, situada naquele bairro, pertencente àquela metrópole, capital de uma potência latino-americana, antevemos uma metáfora que serve a muitos outros lugares do planeta, invertendo-se ciclicamente o zoom para regressarmos à dimensão mais pequena e concreta, onde cabe alguém. Alguém, ainda que diverso do perfil ímpar de Cleo: meiga, despojada, corajosa, diligente, imersa no silêncio e na sabedoria dos simples. Como se fosse banal. É nessa simplicidade humilde e pragmática, que assume gestos heróicos, dos quotidianos aos excepcionais, ao alcance de poucos.

Salvou as crianças de um afogamento, apesar de não saber nadar. Cuarón confidenciou que Libo se comove ao ver «ROMA», por causa das crianças: «The beautiful thing is that when she cries [ao rever o filme] it’s not because of what is happening to her, it’s because she’s concerned about the children. She’s not focusing on her own pain»

Ao «The Guardian», que elegeu «ROMA» o filme de 2018, Cuarón dissertou sobre esta dimensão do filme, em espiral (21.Dez.2018): «It’s a year [de 1970 para 1971] in the life of a family and a country … For me, this film has always been difficult to describe. It was a process of following the character of Cleo [the maid to a middle-class family, based on his own] and through her exploring wounds that were personal – family wounds. Then I realised these were wounds that I shared with many people in Mexico. And then I came to the conclusion that they are wounds shared by humanity.»

Nesse deambular entre espaços e modos de vida, acompanhamos o contraste entre o frémito fervilhante da cidade e a nudez de meios rurais sub-desenvolvidos, onde coabitam bolsas de luxo que são fincas magníficas. Numa delas, Cleo, mãe e filhos Cuarón festejam a passagem de ano, comprovando quanto as condições de vida confortáveis e seguras convertem a maioria dos incidentes em aventuras divertidas e cheias de adrenalina. Assim acontece, quando têm de domar o perigoso incêndio que devora o restolho seco, altas horas da noite, à vista da casa grande.

A simplicidade narrativa do argumento preserva a candura de quem viveu à época e encarou a realidade sem chaves de leitura ideológicas, que tendem a reduzi-la a um contínuo despique entre grupos/classes. É na finca, a acompanhar a correria entusiasmada das crianças pela pradaria, que Cleo lembra o cheiro saudável do campo pobre da sua infância. É a pura constatação da mesma terra húmida e da mesma erva fresca que cobre a crosta terrestre, cruzada por ricos e pobres, caucasianos e descendentes de índios, novos e velhos. No seu olhar despido de preconceitos, não há raiva, apesar das desigualdades em geografias tão próximas.

Dois mundos paralelos, entre a indigência dos povoados indígenas e a superabundância nas quintas.

Aliás, a mansidão de Cleo, e também a amizade da família com quem vive, tornam-na alheia à turbulência social e política que já agita a capital. Curiosamente, mais do que gente revoltada (com bons motivos para querer mudanças), vemos miúdos brigões, cujo principal fito é especializar-se em artes marciais para fazer carreira como mercenários sem escrúpulos. Naquele tempo, esses marginais infiltrados entre os estudantes valiam-se da ideologia para encher as ruas de slogans, reivindicações e desacatos. Hoje, preferem os circuitos da droga, melhor remunerados, mas impondo-se pela mesma lei do mais perigoso. Esse era o namorado de Cleo, que a tinha abandonado no momento (grávida) mais egoísta, descendo ao pior dos machismos. Impunha-se, descaradamente, pela intimidação cruel, que medra bem em sociedades onde o Estado de direito é frágil.

Os arruaceiros, que prosperam nos ambientes de guerrilha das sociedades mais vulneráveis.

Se Cleo é uma super “nanny” e o esteio-mor da afectividade da casa, também aquela mãe sobressai, apesar de gestos precipitados e descompensados, aqui e ali, sendo o mais inócuo e espalhafatoso a aselhice a estacionar o carro descomunal numa garagem acatitada. Porém, o osso duro de roer foi a gestão difícil de uma casa de quatro crianças sem pai, quando o marido corta com a família e desiste de ajudar no sustento dos filhos, entretido em viagens de luxo com outra. Isso obrigou-a a uma superação constante, até ao clímax vivido no fim-de-semana na praia. Percebe-se que a serenidade no jantar ao pé do mar correspondia à bonança depois da tempestade de lágrimas, por desgostos e receios. Conseguira renascer e alcançar aquele grau de calma livre e meigo, que lhe permitia dar a notícia aos filhos de modo construtivo. Tornara mais credível a proposta de transformarem o rol de perdas – menos pai, menos dinheiro, menos mãe que iria ter de trabalhar fora, intensamente – numa aventura aliciante e descobrirem graça nesse futuro incerto. Seria a agenda ousada do Novo Ano, com vida nova. Estava também preparada para o segundo round, das dúvidas e revoltas sob a forma de pergunta: o pai já não gosta de nós? nunca mais o vemos? então, quando? porque nos deixou, magoámo-lo?  Uma a uma, respondeu-lhes pela positiva, sem fantasias. Por fim, no terceiro round, deixou-os desabar em choro, com o desespero das crianças que sentem o chão fugir-lhes debaixo dos pés. Respeitou em pleno a sua hora de dor, com a coragem de os deixar ter (e exteriorizar) medo e revolta, sem receio de reacordar os seus próprios fantasmas. Invulgar, até pela tranquilidade.

Conseguiu gerir todo o serão em favor das crianças, como se fosse fácil.

A super avó é mais um rosto feminino bondoso e disposto a tudo para dar alegria às crianças e valer a quem precisa… segundo os seus limites. Claro que forra os netos de presentes e guloseimas, como todas as boas avós. Assim como aguenta o pior dos frissons, ao acompanhar o final da gravidez de Cleo, numa manhã traumatizante, onde se viram encurraladas numa manifestação sangrenta, pistola apontada à cabeça, início do trabalho de parto, trânsito infernal até ao hospital… Mesmo apavorada e chorosa, nunca arredou pé nem abrandou na ajuda! 

Falta a ginecologista que acompanha Cleo, a pedido da mãe Cuarón, conciliando profissionalismo com uma especial delicadeza para lidar com aquela empregada tão suave, pouco erudita mas incrivelmente sábia, de um pudor em filigrana. 

Talvez por gosto pessoal, parece-me especialmente tocante a homenagem às mulheres vir de um homem. Em tempos de #MeToo! terá a vantagem de mostrar que há gente diferente (homens incluídos, claro), com outras perspectivas e outras atitudes, a sugerir que é irrazoável querer interpretar a realidade com filtro único, necessariamente simplista e redutor. Acaba-se mais a medir forças que a solucionar, num círculo vicioso de confronto. Por junto, é lapidar e ligeiramente irónico vir de um filme a preto-e-branco a homenagem aos milhares de tons e facetas da vida, que não cabe nos padrões humanos, por mais bem intencionados que sejam. Por isso, ROMA é tão livre e libertador, procurando tomar a realidade por bússola. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: ROMA
Título traduzido em Portugal: idem 
Realização: Alfonso Cuarón
Argumento: Alfonso Cuarón
Produzido por: Alfonso Cuarón, Gabriela Rodriguez e Nicolas Celis
Direcção de Fotografia: Alfonso Cuarón
Banda Sonora: Cantores mexicanos e norte-americanos, da época.
Distribuidora: NetFlix 
Duração: 135 min.
Ano: 2018
País: EUA / México 

Elenco:
Yalitza Aparicio (Cleo, a fantástica empregada de ascendência índia)
Marina de Tavira (Sofia, a dona da casa e mãe dos 4 filhos), 
Marco Graf (o filho mais novo)
Daniela Demesa (a filha, de petit-nom Sofi)
Verónica García (a avó)
Nancy Garcia (Adela, a segunda empregada)
Latin Lover (o mítico prof. Zoveck que conclui a aula de karaté)
Jorge Antonio Guerrero (Fermín, o namorado de Cleo),  etc.

Local das filmagens: México

Prémios: Bafta de Melhor Filme na edição de 2019; Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2018; após o lançamento, pela Netflix (Dez.2018), foi aclamado pela  crítica como uma obra "dolorosamente bela" e "atraente"; escolhida pelo National Board of Review para o Top Ten dos melhores filmes do ano. Nos EUA, a  revista Time e o sindicato New York Film Critics Circle deram-lhe o primeiro lugar. Na Grã-Bretanha, o The Guardian considerou-o o melhor filme de 2018. Está nomeado para 10 Óscares.  

OBSERVAÇÕES A preto-e-branco; autobiográfico. 

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