11 julho 2019

Do plágio

Num certo sentido, ter um cão apaziguou a minha relação com os cães. O último cão que tive desapareceu correndo atrás de um carro, sem que o conseguíssemos deter. O penúltimo, dizem que com graves problemas de dores de ouvidos, mordia inesperadamente e democraticamente. Ao temor da incerteza quanto à reacção do cão associava-se um horror que tenho, talvez atávico, às surpresas. Na verdade, só gosto das surpresas quando me informo previamente do que serão. A existência do cão com otites, mal que degenerava numa certa violência, fazia suspender a minha mão perante o focinho de um cão. Será que vai morder? Tem problemas de dores inesperadas? Ter um cão manso e simpático em casa pacificou-me: talvez a maioria dos cães seja assim, pelo que hoje me atiro à festa de forma quase universal, com um denodo de que não me sentia capaz.

A introdução é longa e tem um propósito central, que é explicar que as coisas mais prosaicas nos proporcionam uma relação diferente com outras coisas prosaicas. Se o meu cão actual me deu um novo sossego com os cães em geral, a tradução de um livro em que o pensamento de S. Tomás de Aquino (Itália, 1225 - 1274) está muito presente deu-me um novo olhar sobre aqueles que são acusados de plagiadores. Um olhar mais pacífico, apresso-me a dizer. Eu explico.

Um dia escrevi a um amigo que me sentia como a criança a quem dão uma gravata pela primeira vez, e que a põe ao pescoço também pela primeira vez. A gravata existe há muito no mundo, mas, para o miúdo, tudo aquilo é uma novidade, e ele sente-se como se fosse o primeiro homem a usar uma gravata. É uma emoção única, que o mundo só conheceu naquele dia. Depois disso, tudo é uma cópia, um pastiche da emoção juvenil. Sabemos bem que não é assim. Mas eu, adulto feito e direito, tive largos momentos de veleidade intelectual: discorria sobre as coisas como se elas me brotassem frescas na mente; em bom rigor, tudo aquilo em que eu pensava como se fosse um pensamento virgem já existia desde há muito nos livros. Nunca inventei nada, a não ser a veleidade de inventar.

Um dia fiz uns versos singelos, para serem cantados numa melodia de fado. Algo me soava estranho, depois de vê-los escritos. A resposta era simples: uma das frases era de uma música conhecida e eu não me apercebera disso. Nessa linha de pensamento - e socorrendo-me da maior bonomia possível - há muitos plagiadores que não plagiam verdadeiramente: acham que criaram uma linha melódica única - como única é a gravata do miúdo - mas depois percebem que aquela linha melódica já havia sido criada por alguém. A gravata do miúdo, o meu pensamento, a frase musical fazem parte de uma mesmo contínuo, que é o das coisas que já foram potencialmente inventadas.


A Summa Theologica, a obra magna de S. Tomás de Aquino, consta dos pontos da fotografia acima. Pensamos em vidas equilibradas, e S. Tomás escreveu sobre isso; pensamos em preço justo das coisas, e S. Tomás dedica-lhe páginas de pensamento; pensamos em propriedade privada e S. Tomás debruçou-se sobre isso; pensamos em vida boa ou em felicidade e está lá tudo, pela pena e pensamento de S. Tomás de Aquino. Talvez não inventemos nada de muito importante, apenas copiemos o que outros já inventaram. A probabilidade de plagiarmos é muito alta; felizmente o meu cão pôs tudo em perspectiva.

JdB 

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