18 julho 2019

Textos dos dias que correm *

Livros. 30 anos depois, talvez, de ter tentado ler, na língua original, o Ulisses de James Joyce – e ter desistido na página 2 – leio o Retrato do Artista quando Jovem (Relógio D’Água, tradução de Paulo Faria). Estou a gostar muito, sendo que tem de ser lido em pedaços parcimoniosos, porque a escrita é densa. Terminado em 1914, a novela descreve a infância em Dublin de Stephen Dedalus e a sua busca de identidade (da contracapa). Muito se passa num colégio interno de  jesuítas, e percebe-se que durante séculos o Céu dos católicos foi ganho, não à custa da procura do Bem, mas porque as pessoas tinham o pavor do Inferno e do castigo de Deus. Atente-se numa pequeníssima parte da pregação do orientador de um retiro para jovens de dezasseis anos: Sim, um Deus justo! Os homens, raciocinando sempre como homens, ficam estupefactos por Deus aplicar um castigo eterno e infinito no fogo do inferno como pena por um único pecado grave. Raciocinam assim porque, cegados pela grosseira ilusão da carne e das trevas do entendimento humano, são incapazes de apreender a infâmia hedionda do pecado mortal. Raciocinam assim porque são incapazes de perceber que mesmo o pecado venial tem uma natureza tão sórdida e tão hedionda que, ainda que o Criador omnipotente pudesse pôr fim a toda a maldade e infelicidade no mundo, as guerras, as doenças, os roubos, os crimes, as mortes, os assassínio, na condição de permitir que um só pecado venial ficasse impune, um único pecado venial, uma mentira, um olhar irado, um momento de preguiça deliberada, Ele, o grande Deus omnipotente, não o poderia fazer, porque o pecado, seja por pensamentos, seja por actos, é uma transgressão da lei d’Ele, e Deus não seria Deus se não punisse o infractor.

JdB

* excerto de um post publicado em 13 de Julho de 2012 

2 comentários:

Anónimo disse...

Isto não terá propriamente a ver com o texto, mas, lendo-o, assaltou-me esta dúvida: existe mesmo pecado individual, ou perdão individual, ou salvação individual? No fim, Fulano salva-se mas Sicrano não? Talvez. Ou talvez a humanidade seja uma só e ou se salva toda ou se perde toda?
V

JdB disse...

V,

Obrigado. É uma boa questão para a qual não tenho resposta, não só porque nada sei de nada, mas porque nunca tinha sido assaltado por essa dúvida.
Uma vez, num almoço de amigos alguém muito católico me referia, com indiscutível horror, que ouvira um jesuíta em Lisboa a falar na salvação como algo comunitário. Dizia ele - este meu amigo - que a salvação seria individual.
Eu tendo a concordar com esta ideia da salvação individual, mas não ponho horror - apenas interrogação - à posição do dito jesuíta. No fundo, eu acho que Fulano se salva e que Sicrano se salva. Talvez não se salve - e mesmo isso tenho dúvidas - aqueles que ostensivamente não querem ser salvos, e que negam o desejo de salvação até ao fim da vida.
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