18 fevereiro 2022

Textos dos dias que correm

Escutar: Um poder mal usado

Conta-se que o filósofo Aristipo, discípulo de Sócrates, foi muito criticado por se ter ajoelhado diante do tirano Dionísio. Aristipo justificou-se dizendo que não era culpa sua o facto de Dionísio ter os ouvidos… nos pés!

Aristipo tinha compreendido bem que os seres humanos não gostam das palavras verdadeiras, mas apreciam as palavras complacentes. Somos todos como o tirano Dionísio. E a comunicação mediática entendeu-o bem. A política tornou-se muitas vezes a arte de encontrar as palavras que a maioria quer ouvir dizer. Não importa se são verdadeiras ou falsas, se se realizarão ou se depressa serão esquecidas. O importante é que hoje o Dionísio que está em nós fique satisfeito. A responsabilidade do outro lado é também do consumidor, do cidadão, do espetador, porque, como afirmava Plutarco: «Como cada um, autocomprazendo-se, é o primeiro e principal adulador de si, aceita sem dificuldade um testemunho exterior que confirme os seus desejos e as suas ilusões». No mercado das palavras, andamos, na maior parte das vezes, à procura do que nos convém.

Esta necessidade de confirmação encontrou também um rosto feminino na bruxa da “Branca de Neve”, que interroga o espelho para se ouvir confirmada na sua absoluta beleza. Mas de vez em quando a realidade desilude-nos e devolve-nos uma imagem menos agradável do que esperávamos. Por vezes, o espelho da realidade é impiedoso, mas se deixamos de o escutar, tornamo-nos protagonistas das ações mais deploráveis.

De Dionísio em diante, o poder afinou cada vez mais a manipulação da escuta. Se, por um lado, as empresas escutam de maneira falsa e interesseira os gostos e as tendências dos clientes, por outro há também um poder que se alimenta recusando a escuta. Se, por exemplo, num processo judicial o acusado não é escutado ou não lhe é garantida a legítima defesa, ou não são escutadas as testemunhas que podem justifica-lo, estamos diante da injustiça perpetrada mediante o abuso do poder. «Não te escuto» quer dizer «para mim não existes e posso fazer de ti o que eu quiser».

Ao contrário, a escuta autêntica é a premissa necessária para julgar. O preconceito é uma barreira à escuta. Renunciamos a escutar quando pretendemos saber já, supomos conhecer, estamos convictos de que a nossa ideia corresponde necessariamente à verdade. Hoje, mais que nunca, são muitas as vítimas da injusta ausência de escuta.

É claro, portanto, que a reconstrução de um mundo justo passa através do exercício da escuta. Vemo-lo antes de tudo na relação entre pais e filhos, adultos e jovens. A necessidade de se ser aprovado e reconhecido passa necessariamente através da experiência da escuta: um pai tem nas mãos o poder de gerar frustração ou bem-estar no seu filho simplesmente refutando ou acolhendo o implícito, e por vezes silencioso, pedido de escuta. Também uma instituição, também a Igreja, tem nas suas mãos o poder de dar acolhimento ou transmitir indiferença. Muitas feridas que trazemos aos ombros foram geradas pela perceção, verdadeira ou presumida, de não termos sido escutados: nessas ocasiões não nos sentimos amados.

Vendo bem, a capacidade de escutar é precisamente a possibilidade dada ao ser humano para evitar o risco do delírio de omnipotência e para reconhecer que foi feito para a relação. A criança aprende a escutar antes de aprender a falar, aliás, aprende a falar precisamente porque tem a capacidade de escutar: falar quer dizer inicialmente repetir aquilo que escuto. Isto quer dizer que nunca aprenderia a falar se não houvesse antes de mim alguém que me dirige a palavra e que posso escutar. Apenas porque escuto, posso falar. Hoje, talvez, já não somos capazes de falar precisamente porque deixámos de escutar. É como se ao não escutar, eliminássemos a verdade da nossa origem.

Esta dinâmica é muito clara na revelação bíblica: «Deus disse» é o primeiro passo da história da salvação. O ser humano escuta. Reconsiderar a nossa atitude para a escuta significa também reapropriar-se da nossa identidade diante de Deus. Graças a esta capacidade de escuta, o ser humano pode receber o dom da lei. Reencontramos aqui o profundo nexo, que no latim é evidente, entre escutar (“audire”) e obedecer (“ob-audire”). Não se pode obedecer sem escutar. Se a rebelião fundamental do ser humano consiste na recusa da relação com Deus e com os outros, só pode começar com o fechamento dos ouvidos. O mal começa daí, da des-obediência, da traição do dom da escuta: o eu toma o todo o espaço quando não há mais nada que entra na nossa vida.

Obedecer à realidade quer dizer, antes, reconhecer a tarefa que ela, generosamente, como dizia Viktor Frankl, tem para nós. Sem esta escuta, restam as ideias sem pernas. Arriscamo-nos a construir castelos sem alicerces.

Uma sociedade tem o poder de escutar a sua história ou de romper a relação com o seu passado. A memória coletiva é o fundamento da reconstrução. Quando Israel regressa do exílio, como descreve o livro de Neemias, precisa de escutar a narração do seu caminho rumo à terra prometida: diante dos escombros, o povo precisa de reconstruir, mas só o pode fazer sobre o fundamento do seu passado.

Há muitas vozes, e facilmente podemos ser enganados. Há quem grita mais forte e quem fala de maneira mais suave. Por isso a escuta não é simplesmente ouvir. O ouvir fica pela orelha, a escuta é a capacidade de ligar a cabeça e o coração. É o início do discernimento: escuta-se quando se compreende com o intelecto e se sente com o coração. Só numa escuta honesta reencontramos a nossa plena identidade, integrando as dimensões fundamentais da nossa pessoa.


Gateano Piccolo
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 17.02.2022

1 comentário:

Anónimo disse...

O ser humano aprende a falar com cerca de 3 anos; a ouvir, nunca.

in Programa do jô

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