16 fevereiro 2022

Vai um gin do Peter’s?

A CUNHADA QUE LANÇOU VAN GOGH

É bem conhecida a amizade e enorme sintonia entre os dois irmãos Van Gogh, que se entreajudaram ao longo da vida. Theo, 4 anos mais novo do que o pintor, foi o promotor, mecenas e fiador incansável do irmão, mas sem êxito comercial. Quando em Julho de 1890, Vincent morreu abruptamente (ou por suicídio ou por um homicídio de contornos obscuros), a sífilis de Theo agravou-se e, seis meses depois, expirava também. Deixava um filho de um ano de idade, Johanna (Jo) Bonger viúva aos 28 anos e, por herança, a maior fatia da obra de Vincent, composta por perto de meio milhar de óleos e centenas de desenhos. 

Depois de enviuvar, Jo van Gogh-Bonger (1862-1925) trocou a Cidade das Luzes pelos Países Baixos, onde passou a gerir uma estalagem, que decorou de cima a baixo com as telas de Vincent. Recusara liminarmente o conselho dos amigos para se ver livre de um espólio artístico de pouco valor, que lhe roubava imenso espaço. Mas Jo era muito intuitiva e, mesmo sem grandes conhecimentos de arte, partilhava com Theo a admiração pelo talento de Vincent. Do ponto de vista psicológico, até lhe parecera o cunhado mais forte do que o marido, conforme escreveu depois de se cruzarem em Paris, tinha Vincent acabado de terminar o internamento de 10 meses no hospício de Saint-Rémy-de-Provence.

Theo, Jo e Vincent. O casal esteve casado pouco menos de um biénio, até à morte prematura de Theo, aos 33 anos de idade.

O artista era o mais velho dos 6 filhos do pastor protestante Teodorus. Seguia-se Theo.

Mais: na hora aparentemente de derrocada e, com toda a certeza, de grande dor pela recente viuvez, o empenho em divulgar o talento de Vincent sobrepôs-se a tudo e revitalizou Jo. Interessou-se logo pela extensa correspondência dos dois irmãos, que resolveu classificar. No fim da vida, ainda a traduziu para o inglês. Estudou história e técnicas de arte para perceber melhor o alcance da obra do cunhado. Conseguiu que um crítico famoso mudasse de opinião acerca do trabalho de Vincent (que começara por taxar de banal), depois de lhe dar a ler cartas onde o pintor dissertava sobre o processo criativo.

O domínio do inglês, do francês e do alemão, permitiu a Jo internacionalizar a sua acção de marketing, alimentando uma correspondência regular com os principais museus e galerias do Ocidente para apresentar o portfolio de Vincent. Logo em 1892, organizou a primeira exposição de Van Gogh a solo. Em 1905, montou e financiou a maior exposição de que há memória sobre o artista, fazendo acorrer a Amesterdão a elite cultural europeia para apreciar uma mostra com cerca de 500 obras. Finalmente, o nome do pós-impressionista (se alguma classificação lhe for aplicável) tornava-se incontornável no mercado das artes. 

Desconhecendo que Jo seria a sua melhor promotora dando continuidade ao esforço de Theo, Vincent também tinha acarinhado como podia o irmão e a cunhada. Por exemplo, para comemorar o nascimento do sobrinho (31.JAN.1890), que recebera o nome do tio-artista, produziu e ofereceu uma das suas telas mais gloriosas (tema do gin de 7.ABR.2010), pintada com sofreguidão no hospício em Saint-Remy, quatro meses antes da sua morte: «Amendoeira em flor». Ali celebra, com uma paleta rica em azuis e rosas, uma alegria profunda que não caberia em palavras: «Today I’ve just received your good news that you’re a father at last, that the most critical moment has passed for Jo, finally that the little one is well. It does me, too, more good and gives me more pleasure than I could express in words». Inspirara-se nas litografias japonesas para eternizar um horizonte luminoso. Converteu-se logo numa das obras preferidas da família de Theo, que a colocou no  lugar mais destacado da sala, por cima da lareira. Permaneceu sempre no património familiar, longe do circuito comercial, que começou a ser pujante e muito tentador a partir de 1905. 

«AMENDOEIRA EM FLOR» - de fevereiro de 1890, em homenagem ao nascimento do sobrinho. É das telas mais expressivas da luminosidade de Vincent, marcado por uma biografia sofrida, mas que ousou pintar quadros coloridos, onde a vida é celebrada com confiança e olhar generoso. 

Em 20 anos, Jo conseguiu a proeza de vender perto de metade dos óleos que recebera em herança por valores avultados e honrosos. O gosto pelo estilo de Vincent ajudava-a a valorizar cada peça, embora depois lhe custasse desfazer-se delas. Assim aconteceu com uma das versões dos girassóis, vendida à National Gallery de Londres. Na encomenda, deixou um cartão eloquente: «Parte-se-me o coração. Mas é para a glória de Vincent.».

«Girassóis» - 1888, da série de quatro telas pintada em Arles, para decorar o quarto do seu amigo Paul Gauguin.

Por junto, Jo revelou-se campeã no empreendedorismo, singrando em segmentos de arte e de negócio dominados por homens. A nível político foi progressista: uns meses antes da sanguinária Revolução de Outubro, conhecera em Nova Iorque o revolucionário mais intelectual (mas não menos cruel) do núcleo duro do bolchevismo – Leon Trotsky. Ambos participavam num encontro de sensibilização política, onde o russo incitou à erradicação do capitalista no seu país. De volta à Holanda, Jo ingressou no movimento trabalhista holandês, de inspiração social-democrata e empenhou-se mais na causa feminista. 

Em Junho de 2021, um programa de cultura do canal gaulês France 24 dedicou uma curta-metragem(1)  ao seu contributo na divulgação da arte de Van Gogh. Em breves 6 minutos, conhecemos mais pormenores da atribulada biografia do holandês e do irmão, ambos amigos de grandes pintores como Gauguin, Toulouse-Lautrec, Pissaro e vários outros. Mas nem assim deu para vender mais do que uma tela, em vida. É na investigação às origens do sucesso póstumo de Vincent que se descortina a combatividade e enorme sensibilidade artística da marketeer mais arrojada da obra de um génio pouco compreendido em vida:

 

À argúcia de Jo para reconhecer arte onde muitos apenas viam pinceladas estridentes e incompreensíveis, somou-se o dom de saber comunicar urbi et orbi a beleza inculcada nas telas de quem ousou pintar os sonhos «I dream of painting and then I paint my dream» (in carta a Theo). Um pintou, mas foi outra que revelou a qualidade do artista, confirmando que nada se equipara ao trabalho das boas equipas (creio)! De certo modo, Jo cumpriu as convicções de Van Gogh, que ansiava pelas maiores estrelas do céu («And yet, once again, I allowed myself to be led astray into reaching for stars that are too big.») e intuía um Deus que melhor se conhece e ama através do amor à Sua criação: «I always think that the very best way to know God is to love many things.»

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: JO BONGER, LA FEMME QUI A RÉVÉLÉE VAN GOGH
Realização: Vincent Roux
Argumento: Parceria de: Museu & Fundação Van Gogh em Amesterdão (desde 1973); Google Art Project; The Yorck Project; The Courtauld Gallery de Londres; Grand Palais de Paris; AFP; e Alessandra Boccone.
Produzido por: France 24
Fotografia: Deep Nostalgia @ MyHeritage
Banda Sonora: “Steinway to Heaven” – Paul Michael Harris e David Weston
“In flight” – Patrick Hawes
“Monet’s brushes” – Tim Garland
“World is yours” – Jerome Leroy.

Duração: 6,34 min.
Ano: 2021
País: França 
Material filmado: Fotografias de arquivo e telas de Vincent nos acervos ref. nas entidades parceiras desta curta-metragem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom trabalho!
Cump

Anónimo disse...

Subscrevo!

fq

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