Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!
Fernando Pessoa
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