20 março 2010

A esperança de Margarida (cont)

Abriram naquele doido amarelo pelas ruas onde antes passavam todos os dias Cristina Onassis e Carolina do Mónaco, pela Avenue Mozart depois pela Victor Hugo até à Étoile onde seguiram directos para o Jardins Elisées, um bar caro de cantoras mulatas com as mesas em espiral, escada em caracol, onde os árabes faziam cair notas sobre quem cantava e o piano de cauda no meio de tudo. Onde o dinheiro ia balouçando pelo ambiente e descendo até ao chão. Aquele ar de riqueza com um pouco de chique e muito de ostensivo irritou solenemente Ângelo, no fundo um serrano que se lembrava bem da Condessa e das senhoras da Cabreira a correrem para a casa do Abade Afonso às terças todas com a noção forte do que era bom e sempre com reservas em relação a almas pequenas, por muito douradas que fossem, mas que não impressionavam, porque eram pretensiosas, eram ocas e faziam rir.

Sobretudo surpreendido ficou com as oito ou dez mulheres ansiosas e pintadas que esperavam Jean num sofá corrido vermelho, a rir e a mexerem-se contentes de o verem finalmente, esperavam o que a noite tinha para lhe propor, com ele num papel de agente profissionalmente assumido! Todas elas lindas, bem vestidas de morrer e a cheirar bem. Queriam mais a companhia de um velho lânguido cheio de vícios e de dinheiro do que um jovem potente manequim a prestar provas semana que vem para Armani, Valentino, Dolce & Gabanna ou Mugler, quem fosse! Parece que todas tinham deixado de sentir, com horizontes confusos e sem noção de sexo, de amizade ou de bem. Eram apenas bonitas, pronto, mas bonitas de gritos, caramba, porra! Não se deixavam perder por um amor, nem por uma paixão sequer; apenas e simplesmente pelo brilho do dinheiro que não as levava nunca a lado nenhum, mas ainda não tinham percebido isso, coitadas delas, e quando se apercebessem já seria tarde com certeza!

Ângelo pensou em Deus, passou os olhos por todas aquelas pequenas giras e boas sem rumo, pensou em si e no que tinha construído; e que lhe sabia a nada, a escuro ou a vácuo, qualquer coisa dentro desse conceito. Passou a mão pela cara e levantou as sobrancelhas, preocupado consigo, com o seu destino e com o seu cansaço. Queria qualquer coisa que não era de certeza aquilo que lhe tinha ofuscado os olhos toda a vida; se calhar era apenas agarrar alguém, mesmo sem sexo definido, pela cintura e pedir que partisse consigo para o cimo de uma montanha a sentir que não eram dois mas apenas um, sentir que os silêncios não eram pesados e que se podiam rir das mesmas coisas, deslumbrarem-se com as mesmas cores e com horizontes rasgados. Aquele champanhe era realmente bom, enfim, mas o que pensou estava certo, sabia-o desde sempre! O que o tinha feito ir com um circo estrada fora atrás de um dia sem destino, quando pensou que o mundo não tinha fim, e se calhar não tinha; e o que centenas de Ruths não tinham tido coragem para abraçar durante a vida; era uma constante, um peso, uma perseguição, uma maldição que parecia acompanhá-lo sempre, porque afinal via que nunca tinha chegado a lugar nenhum. A noção geográfica antes da de serenidade pesava-lhe em grande! Nem sentia os toques de cotovelos, de joelhos e de dedos daquelas queridas todas à volta dele! Estava bêbado era o que era, mas feliz, claro, com as luzes, as cores, os sons, os risos, os copos e os cigarros, mais uma vez na sua vida por aí no mundo! E o Nissan continuava como se a noite fosse toda só para ele nas ruas, pelo empedrado e pelo cimento dos passeios, pela noite de Paris. Ângelo e Jean, Sabrine e Nicole, se se tivessem enganado nalguma delas não fazia mal nenhum! Eram daquelas caras que não se decoram. Espremiam todos a adrenalina e os seus próprios corpos até às olheiras profundas. Haveriam de prestar contas sempre no dia seguinte quando acordassem com o peso do mundo na testa e gente estranha na cama enquanto abriam os olhos e vislumbravam algumas luzes dum infinito qualquer por entre as brechazinhas da persiana, com o barulho e a vida a correrem indiferentes lá fora na rua, os fumos dos carros, as vozes das pessoas, os pios dos pássaros e o vazio simplesmente.

A pachorra do dia seguinte conquista-se a punho! É despachar quem está a mais entre lençóis tipo “vai lá e apaga a luz antes de saíres” e tentar depois continuar a viver entre uma cerveja ou antigas receitas de tias velhas para a ressaca, com gemas de ovo, molho inglês e sal que fazem um cristão vomitar até à última. Se, por outro lado, a tal receita for com pozinhos e coisas menos claras para o nariz e para o estômago de alguém num estado assim lastimável, é porque se está nas mãos de estranhos esquisitos, nada cristãos, e mais vale continuar ressacado com sabor a cabo de guarda-chuva na boca e um paralelo de calçada na testa. Mas, profundamente cansado como se sentia, já nada espantava Ângelo, não cansado de noitadas, mas da vida e da procura que não sabia ao certo identificar.

Depois da tal temporada no Olympia, arranjou emprego num casino. Não como “O Maior Mágico do Mundo vindo directamente da América do Sul”, mas no bengaleiro. Arranjou também um pequeno apartamento confortável e modesto com vista para centenas de varandas com roupa a secar para os lados de La goute d’Or e viu-se com muita pouca vontade para sair à noite em esquemas com Jean Paul ou com amigos mais ou menos que ia conhecendo. Espantava-se com a sua capacidade vinda não percebia de onde para tratar da roupa e do pequeno-almoço a qualquer hora que fosse, para ir trabalhar ou apenas para sair e sentir o ar do fim da tarde na cara. O seu T1 era limpo e arrumado, cheio de coisas no frigorífico, tipo iogurtes, patês, fiambre e coisas congeladas. Passava os natais com Jean Paul e com loiras flamejantes, sempre diferentes, a rir e a beber, mas isso era inevitável com um comparsa assim e sozinho, completamente sozinho algures no mundo, como se sentia, sem o cheiro da serra, as recomendações da Domingas para ir à missa e as discussões aos gritos sobre futebol pelas tascas da Cabreira.

Um dia, sem lhe parecer rupturante, fechou as duas malas que tinha, deu um beijo enorme a Jean e partiu numa camioneta de emigrantes para trás de todos os montes, Europa fora entre milhares de sacos vazios que passadas semanas tornariam cheios de azeite, de bacalhau e de vinho. Ele, pelo que lhe dizia respeito, não voltaria. Confiava na sua sorte quase inabalável, o que não foi fácil, porque quase dois dias de viagem enlatado entre berros de bêbados, guinchos de criancinhas e cheiro a frango, pó e sopa, com um calor insuportável e uma velha gorda ao lado a querer sempre conversar, acabam por abalar a fé de qualquer cristão!

Assim, quando a camioneta parou e ele desceu na Praça do Conde de Vivalma, a maior da Cabreira, a meio do dia e do calor, pôs as malas no chão e respirou o mais fundo que pode. Os cafés, os correios, as lojas, tudo estava mudado, mas eram-lhe completamente familiares as linhas, as cores, os cheiros! Os toldos com reclames da Super Bock e o sino da igreja a chamar para a missa da tarde! As mulheres a escolherem fruta na mercearia do Quim Aldrabão e a Câmara com a bandeira nacional, sempre solene. Mas Ângelo já contava com esta avalanche de emoções, por isso tinha voltado com uma sensação estranha de conquista e com uma enorme serenidade dentro de si, já se sabe. Foi logo para casa da Domingas com ar firme, mas humilde, e bateu à porta, hesitante, sem medo. Para ela foi uma chatice ouvir a campainha, porque era terça e já estava atrasada para ir para casa do Senhor Abade. Quando a professora abriu, curvada e com os óculos na ponta do nariz e viu um homem desconhecido, assustou-se até conseguir reconhecer o sorriso do seu pai na cara de Ângelo e, sem dizer uma palavra, sentou-se no chão a chorar. Ângelo chegou-se ao pé do braço dela, levantado e a tremer, com a intenção de tocar-lhe com o indicador no nariz, nos olhos, no cabelo e nos dentes, sempre sem conseguir falar. Sentiu-lhe o cheiro, mas não ouviu o som da voz dela, apenas soluços e o sabor salgado de lágrimas. Uma cena lancinante foi o que foi! A partir daí a vida de ambos mudou. Ângelo não tinha voltado, tinha ressuscitado e calmamente foi-se embrenhando na vida da professora e da vila.

2 comentários:

Anónimo disse...

PCP, que grande enredo!..., espero o final entusiasticamente!

Bjs, Catarina L V

Anónimo disse...

Catarina, o enredo não é meu!!! É do Pedro Dantas. Só que foi por meu intermédio que este conto foi publicado. Mas não é da minha autoria. Mas obrigada pelo elogio. Bjs, pcp

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