11 outubro 2012

Moleskine


Legenda. Durante o fim de semana passado estive em Londres numa conferência (Barbican Centre). A fotografia acima mostra uma das sessões, numa sala chamada Conservatory. Apesar da exiguidade do número de cadeiras esteve-se confortavelmente; o espaço é bonito, como pode ver-se. Além das plantas havia barulho de pássaros, em volume suficiente para nos darem distracção sem nos matarem a eficiência da escuta. 

Londres. Continua a ser uma das minhas cidades preferidas do mundo. Gostaria de lá viver um ano, gosto sempre de lá voltar. Acho tudo civilizado, mesmo sabendo que nem tudo é. Não se buzina na rua, há sempre um automobilista a ceder uma passagem simpática, há uma variedade étnica que contraria a monotonia. Achei o fish and chips num pub uma refeição magnífica, ao contrário da primeira experiência que tinha tido há uns anos, no country side; se for acompanhada por um pint de London Pride (em Londres é crime beber-se lager, havendo uma oferta tão diversa) é, seguramente, uma experiência gastronomicamente mais agradável do que um bife num qualquer restaurante.

A realidade. Quem se ativer na fotografia que encima este texto pensará o que eu pensaria: grandes vidas! Londres, conferências com ruídos da natureza. Assim, sim... A fotografia abaixo (de uma das organizações presentes) dá uma pista sobre o que fui fazer: representar a Acreditar na conferência anual do ICCCPO (confederação internacional das associações de pais de crianças com cancro) que se reúne em paralelo com o congresso do SIOP (Societé Internacional de Oncologie Pédiatrique). Três dias a falar de cancro infantil, no fundo. Três dias em que o destino nos dá a oportunidade de aferir as nossas prioridades e reforçar o sentido da vida. 



Acasos. Em 2001 travei conhecimento virtual com um médico francês a trabalhar no Canadá. Especialista em tumores cerebrais, explicou-me tudo o que eu (não) queria saber sobre o assunto. Em 2002, na conferência do Porto, passou por Lisboa exclusivamente para me conhecer. Em 2009, na conferência de S. Paulo (Brasil), entre bastante mais de 1000 delegados e várias sessões a decorrer em simultâneo, encontrei-o a deambular num corredor. Agora, em Londres, no meio da multidão, o acaso fez com que nos cruzássemos três vezes. Coincidências, dirão alguns. Eu aponho-lhe o adjectivo significativas, porque lhe dá um encanto qualquer.

Diferenças. Uma das apresentações versa o trabalho que o ICCCPO desenvolve em países menos desenvolvidos, onde a taxa de mortalidade das crianças com cancro (por falta de diagnóstico e de condições) provoca angústias a qualquer um. Fala-se de África e do Bangladesh, mostram-se fotografias de miúdos doentes. Os de África sempre a sorrir; os do Bangladesh sempre com um ar triste.

Olhos. Um casal alemão, recém fundadores de uma associação, fala do caso da filha. Tem um retinoblastoma (cancro da retina) que lhe foi detectado sete meses depois do que poderia ter sido. Porquê? Bastava que os pais tivessem olhado, com olhos de ver, as fotografias que tiraram no Natal. Um dos olhos estava encarnado, devido ao flash, o outro estava branco, devido ao cancro. Uma simples fotografia digital pode fazer a diferença.

Assistência. Olho à minha volta na conferência das associações de Pais, e vejo tudo: gente da Argentina e da Colômbia, de Espanha e da Sérvia, da China e da Nova- Zelândia, da Suécia e da Zâmbia. Gente de todos os continentes. São Pais (talvez mais mães do que pais), mas também gente que venceu o cancro quando tinham 2 anos, 10 anos, 14 anos. Em muitos destes se vê a marca física de um desenvolvimento que não se fez por completo ou de um tratamento que deixou vestígios. A todos nos liga o mesmo: o cancro infantil e, no caso dos Pais, a experiência terrível pela qual passámos, com consequências diversas. Há risos, há motivação, há emoção, há luta por melhores condições, já não, na generalidade dos casos, para os nossos filhos, mas para os filhos dos outros, para os filhos que hão-de vir e que sofrerão, até que a doença seja integralmente vencida...  

Frases ouvidas (I). Sabe, sou um homem com sorte. Toquei a vida dos outros naquilo que é mais vulnerável (Mark Greenberg, médico oncologista canadiano, pai de uma criança que morreu com cancro). 

Frases ouvidas (II). A verdadeira viagem da descoberta consiste, não em procurar novos lugares, mas em adquirir um novo olhar (Proust).

Frases ouvidas (III). Cancer is not contagious. Love is. 

Sonhos. Numa das sessões falou-se do preço dos medicamentos, das nossas relações (ICCCPO e SIOP) com o Organização Mundial de Saúde, com a indústria farmacêutica, para que olhem menos ao lucro e mais à vida humana dos miúdos desfavorecidos, para que atentem em coisas tão simples como o tamanho dos comprimidos que as crianças têm de tomar. Noutra sessão falou-se do avanço da técnica, das descobertas, daquilo que permite haver uma taxa de sobrevivência cada vez maior, sequelas cada vez menores. Há-de chegar o dia de todas as vitórias. Já estivemos mais longe.

Pensamentos. Fala-se de resiliência, de sofrimento das famílias, de como desenvolver defesas. O primeiro slide da apresentação mostra uma criança com um ar triste e a legenda: do you see what I have seen? A frase, que não foi explicada, martela-me na cabeça os três dias londrinos. Talvez o fascínio esteja na não existência de uma explicação óbvia. Naqueles três dias - nesta ou noutra conferência - um sem-fim de pensamentos circula sem nexo dentro de mim. Penso nas frases que ouvi, na sul-africana que mostra uma fotografia de uma filha de olhos azuis e dois anos para explicar que ela tinha morrido; penso na fé, no serviço ao próximo, na eternidade, no precariedade de tudo, nas prioridades trocadas, nos miúdos de África que riem sem saber que morrerão por falta daquilo que na Europa é (quase)   adquirido; penso no sentido da vida, nas coisas grandes que são pequenas e no seu oposto; penso na minha incapacidade, na minha falta de jeito ou de vontade, no discernimento e na força que peço todos os dias. Penso em tudo isto que não consigo organizar, compartimentar de uma forma lógica e construtiva dentro de mim. E acabo por agarrar no telefone para partilhar emoções, sentimentos esparsos, inquietações confusas. Talvez na resposta, no pequeno visor luminoso e colorido apareça uma luz sobre o mistério da frase do you see what I have seen?

JdB   

6 comentários:

LA disse...

Vejo mas nao muito bem.. possivelmente por causa das lagrimas!

Anónimo disse...

Não ouso comentar a "substância" do texto. Direi apenas que é enorme em sensibilidade, densidade e discernimento.
Quanto ao "fish and ships", permito-me duvidar da afirmação feita!
Grande abraço,
fq

Anónimo disse...

O fish and chips vinha embrulhado nalgum jornal interessante?
SdB(I)

Anónimo disse...

A fotografia comoveu-me. 3 dias repletos de emoções bem espelhadas neste Moleskine. Obrigada, JdB. pcp (amei a frase do Proust).

arit netoj disse...

Obrigada João por nos contar mais uma vez esta experiência, este serendipismo sempre presente, estas tristezas cheias de esperança.
Beijinhos

Anónimo disse...

So, JdB, next time time you are in London, let's meet and enjoy a pint together! PO

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