08 novembro 2012

Da criatividade ao balcão

(fotografia enviada por mão amiga a propósito deste post)

Raramente entro numa pastelaria. Interdito que estou, por motivos ponderais, ao convívio íntimo com a doçaria, e tendo uma relação com a bebida café que se resume a chamar-lhe um líquido que me sobe a tensão, muito pouco me leva a esse segmento do canal horeca. Em bom rigor, nada me leva, a não ser a fome (um estado permanente) ou um estudo sociológico que, estou certo, outros antes de mim fizeram com garbo e saber superiores aos meus.

Há muito que perdi a ingenuidade – não o tipo de ingenuidade de que estarão a pensar - mas outra, bem menos interessante, e que diz respeito à bica. Esta bebida deixou de ser uma infusão para passar a ser uma criatividade. Eu explico:

Há alguns meses, espojava eu o meu corpo farto e cansado numa cadeira de esplanada quando ouvi uma senhora nova pedir ao empregado: traga-me um descafeinado em chávena escaldada, pingado com espuma de leite. Quando dei por mim estava a hiperventilar, como diz uma amiga. O empregado manteve-se tranquilo e obsequioso, como se escutasse uma trivialidade de todos os dias. Ao fim de cinco minutos o pedido foi aviado, sem que tivesse havido reclamação. Das duas uma: ou estava em conformidade ou a senhora não percebeu o que deglutiu.

Das raras vezes que vou a uma pastelaria ou estabelecimento comercial semelhante e peço, com a voz projectada que Deus me deu e a multinacional ajudou a desenvolver, uma bica, tenho sempre a sensação de que falta alguma coisa. No fundo, como se levasse para o leito uma rapariga estonteante de beleza e sensualidade e olvidasse, a tapar-me uns artelhos elegantes, uma peúgas pretas e esbambeadas. Fico sempre na expectativa que o empregado me questione, com o sorriso ingénuo de quem acha que o cliente tem sempre razão: e como quer o seu cafezinho?  De facto, se nos perguntam se desejamos a carne mal passada e a água fresca, porque não inquirir, com a mesma solicitude, quais as fantasias que queremos associados ao café?

A cerveja quer-se gelada, o chá quer-se quente (ou frio, dependente da estação do ano), o vinho tinto bebe-se à temperatura especificada pelo enólogo, os sumos apreciam-se frescos ou naturais. No ramo das bebidas – pelo menos destas que mencionei – tudo parece ser simples, pobremente simples. Um café curto sem bisgóia (será que se percebe que a bisgóia não veio?) ou mesmo um café em chávena escaldada com um pingo de leite quente, ou ainda outras variantes em chávena fria, sem princípio ou sem fim, são requisitos que elevam a bica a uma espécie de olimpo das poções quotidianas. Confesso que nunca ouvi questionar-se o pedido, por mais bizarro que possa parecer, pelo que deduzo que nos cursos do iefp estas matérias são tratadas com desvelo e sapiência. Em última análise, o único risco que o cliente corre, com tanto licenciado no desemprego, é o balconista perguntar, confiante e sabedor: peço desculpa, mas sou muito engenheiro. Importa-se de definir o que é leite quente?

Associado a esta temática do café encontramos ainda duas: a forma individual, própria e constante como cada um de nós rasga o pacotinho de açúcar, despeja parte ou a totalidade do conteúdo e se desfaz dele; por último, o mistério que está por trás das pessoas que se assoam e olham com um ar curioso para o lenço, como que a procurar uma parte do cerebelo que tenha acompanhado o muco nasal. Falaremos disso um dia mais tarde, que agora tenho mais do que fazer.

JdB  

6 comentários:

ACC disse...

Hoje fiquei um bocado baralhada.
Falamos da fartura do seu envoltório, do seu desprendimento pelo canal horeca e da atracção pela sensualidade de umas peúgas pretas esbambeadas ou da riqueza poética dos perseguidores da bica?
Sou lerda, mas fartei-me de rir.

Anónimo disse...

Será que a pós-graduação já está a dar frutos?
SdB(I)

Anónimo disse...

Giríssimo! Tirando a parte do muco nasal que me ía dando um abismo de enjoo ... Mas esta análise da bica e dos faits-divers à sua volta, só me fazem lembrar aquilo que todos os artistas fazem (sejam eles fotógrafos, pintores, escritores, whatever): escrevem, numa atitude PENSANTE, sobre o que os rodeia. Você PENSOU, e escreveu, sobre as bicas e afins... Está muito fotográfico, aliás, now that I think of it. Giríssimo, repito! pcp

Maf disse...

like, like, like, like (como costuma dizer mfm !). Sem ter olhado para a assinatura, reconheci imediatamente a sua escrita nas 2 ou 3 primeiras linhas deste magnifico texto. Fartei-me de rir.
Bj. Maf

arit netoj disse...

Que bom! Voltou à sua escrita hilariante! Já tinha saudades. Estamos tão precisados de gargalhadas...
Beijinhos agradecidos

Rita Freitas disse...

Adorei ler!
Esta da bica também já me tinha questionado :)

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