13 novembro 2012

O Capacho


Entrei em casa de Josephine pela primeira vez já no final de Outubro. Gatteville le Phare estava quase deserta, açoitada por um vento norte, húmido, forte e constante, oriundo da escuridão do Canal da Mancha. No céu, tapado com um manto espesso de nuvens baixas e negras que pressagiava chuva, não se via uma estrela, Do mar, uma negritude persistente, vencida esparsamente pelo ciclo ritmado e luminoso do farol local. Perdi-me numa deambulação desorientada pela vila deserta até descortinar o meu destino. À porta, dois vasos grandes com flores locais, despidas na sua nudez outonal. Por cima, um candeeiro baloiçando desenfreado, espalhando uma luz errática pelo alpendre. Tudo parecia triste e lúgubre à excepção de um tapete grande, cor-de-rosa, em formato de meia lua, onde se tinham desenhado rosas num tom desmaiado mas bonito. Acanhei-me de limpar os pés ao único elemento que derramava um pouco de alegria naquela tristeza nocturna.

(Antoine LeBon, Um Outono no fim do mundo, 1958, Edições Largo da Boa-Hora)     

Um capacho será apenas um capacho? Num certo sentido, o da procura individual do equilíbrio das formas e das cores que condiciona as opções e revela escolhas, nada dirá mais sobre o mistério de uma casa onde se penetra pela primeira vez do que o capacho à entrada. Noutra perspectiva, a que é objecto desta reflexão, o capacho tem uma dimensão figurativa que congrega mitos à escala global, como se fossemos todos iguais, independentemente de latitudes, geografias humanas, divindades adoradas.

A definição encontrada nos dicionários é manifestamente curta, reduzindo o artigo em apreço ao utilitarismo das mercadorias vulgares: tapete de esparto a que se limpa o calçado. Numa tentativa de redenção da secura linguística, o dicionário ainda nos proporciona um sentido figurado para a palavra – pessoa servil. Não obstante, a conotação excessivamente negativa destas definições remete o artigo para um estatuto que o impede, algum dia, de alcandorar-se a objecto de estudo e reflexão.

Há uma limitação intelectual – talvez seja correcto dizer-se sensorial – na redução do capacho à sua funcionalidade mais estrita. Na soleira de uma porta o capacho é mais do que um objecto, devendo ser visto como a representação material de uma fronteira que liga, numa primeira fase, o exterior ao interior e, numa fase posterior, a sua inversa.

A limpeza dos sapatos num capacho é mais do que o esfregar intenso, ritmado e em sentidos opostos de uma sola numa superfície rugosa, com o objectivo de remover sujidade indesejável. Este acto, valorizado nos dias de hoje por quem procura apenas uma visão asséptica da vida, tem uma conotação  profunda e que nos remete para dimensões mais vastas do nosso colectivo. Anne Deschamps, uma francesa dos finais do séc. XIX, esposa de um missionário escocês no oriente longínquo, escreveria a um dos seus irmãos:

(...) todos limpam os sapatos num tapete à entrada, ainda que depois se descalcem para entrar. John explicou-me o simbolismo: “entra-se num lar e deixamos o que é exterior no exterior. Entra-se puro, sem influências externas que prejudiquem a harmonia portas adentro”.

Muitos exemplos poderiam ser dados para justificar este desejo de promover o capacho, artigo tão profusamente maltratado, a um estatuto mais condigno com a sua verdadeira raison d’être. A natureza forçosamente curta deste pequeno texto não o permite, no entanto. Não podemos, apesar das limitações de espaço, deixar de referir o significado do capacho no movimento de saída, isto é, do interior doméstico para o exterior mundano. Culturas há – e referimos novamente Anne Deschamps – que olham este movimento de forma diversa.

À saída os habitantes locais contornam o capacho, não porque este esteja sujo, mas porque está repleto de tudo o que para eles significa desequilíbrio da Terra, dos elementos, da sua ligação ao divino – e que pode trazer infortúnios indomáveis.

Deixei a citação da Bíblia – o livro dos livros – para o fim, porque é revelador de um outro ponto de vista. Repare-se na cultura substancialmente diferente da que Anne Deschamps encontrou no oriente, onde o seu marido revelava Jesus aos pagãos:

Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: 
nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; 
que fossem calçados com sandálias, 
e não levassem duas túnicas. 
E disse-lhes também:
 «Em qualquer casa em que entrardes ficai nela até partirdes dali.
 E se não fordes recebidos numa localidade,
 se os habitantes não vos ouvirem, 
ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés
 como testemunho contra eles».
 (Marcos 6, 8-11).

Ver um capacho é ver um símbolo, o espaço medial entre uma casa, no que isso tem de espaço de protecção, e o mundo que a rodeia, ameaçador e violento. Tal como a letra que está no meio de uma palavra, o capacho está no centro de um mundo global que se divide em duas partes distintas e desiguais, porventura antagónicas.

O capacho não é um artigo, mas uma alegoria.

(Jorge Antunes, in Devaneios de uma 2ª feira à tarde, Edições Campos Velhos, 2012).

2 comentários:

ACC disse...

Muito bem escrito. Muito interessante esta elevação do capacho. Este seu amigo Jorge Antunes faz-se, mas o excerto de Antoine LeBon é divinal.

Anónimo disse...

Muito bem escrito. A tal ponto que fiquei perturbada na própria compreensão do texto. A sua forma de escrever está absolutamente soberba, JdB. O Gonçalo M Tavares vai tornar-se um seu fã, trust me. Bjs. pcp

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