26 setembro 2014

Crónicas de um mestrando tardio

Nem às paredes confesso, ou o estilo confessional numa certa poesia de fado

Ó minha mãe vais saber,
a causa do meu desgosto,
que me faz pensar assim,
é porque eu ando a sofrer,
por outra de quem eu gosto,
e que não gosta de mim

(Fado Falso Amor ou Confissão, letra de Domingos Gonçalves da Costa)
***
O estilo confessional refere-se, na literatura, a textos cujo centro é a expressão da intimidade de um indivíduo. No âmbito religioso, as Confissões – consideradas a primeira autobiografia da literatura ocidental - têm lugar de destaque. Para Santo Agostinho, seu autor, aqueles escritos são um caminho de aperfeiçoamento pessoal. O livro é um percurso de fé, a procura do summum bonum. De um ponto de vista profano, o confessar-se está intimamente ligado à narração da própria vida, à justificação aos olhos dos outros, à auto-revelação. O confessionalismo é, por vezes, entendido como a literatura do eu - o autor relata as suas próprias experiências como personagem central da história.
Confissão (em latim confessio) tem vários significados: acto de confessar ou de se confessar, acto de reconhecer os pecados cometidos, declaração de faltas cometidas; reconhecimento de culpa; confidência. Ora, nomeadamente em S. Paulo, inspirador de Agostinho, podem encontrar-se outras confissões que enriquecem a palavra e lhe retiram uma excessiva conotação com a culpa (confessio culpae) nomeadamente:
Confessio amoris
Confessio laudis
Confessio fidei
Confessio vitae
Confessio spei
***
Numa divisão redutora – ainda que não incorrecta – a história do fado pode cindir-se em dois momentos distintos: antes de Amália Rodrigues e depois de Amália Rodrigues. Embora o raciocínio se pudesse aplicar quase por igual às músicas e às letras, partes constituintes fundamentais deste género musical, o âmbito deste trabalho ater-se-á aos versos.
Amália Rodrigues cantou Alberto Janes, Carlos Conde, José Galhardo, Linhares Barbosa, Frederico de Brito (o Britinho), Gabriel de Oliveira. Inúmeros outros fadistas cantaram estes poetas – antes dela, mesmo, e com enorme sucesso. Mas Amália também cantou Camões, Pedro Homem de Melo, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, David Mourão Ferreira. E foram muito poucos os fadistas que se aventuraram a cantar estes poetas. Antes de Amália ninguém o terá feito, pelo menos de forma consistente.
Ao primeiro grupo podemos chamar poetas populares, cuja obra foi essencialmente cantada, raramente impressa em livro ou estudada nos liceus e faculdades. Ao segundo grupo o adjectivo maior, ainda que não sendo uma classificação formal, não é um exagero. Têm vasta obra publicada e fazem, nalguns casos, parte dos currículos de estudo.

Pés descalcinhos,
olhar tão triste
Vai pelos caminhos
cheios de espinhos
mas não resiste
Menino órfão
Tão delicado
Seu coração
pedindo pão
vai p’la cidade
Oh mãe, oh minha mãe,
é longa a noite gelada
Eu sem ti não sou  ninguém
Quem não tem mãe não tem nada
A noite espreita
Escolhe o portal
Ali se deita
E não rejeita
Porque é natal
A noite avança
Custa a passar
Pobre criança
Sem esperança
Põe-se a chamar
Oh mãe, oh minha mãe,
é longa a noite gelada
(...)

Os versos acima são do fado Menino Órfão, com letra de Diamantino Rafael. A cada duas quintilhas (a-b-a-a-b) repete-se o refrão, uma quadra (a-b-a-b). A métrica dos versos adapta-se ao fado que os suportará.

Talvez que eu morra na praia
cercado em pérfido banho
por toda a espuma da praia
como um pastor que desmaia
no meio do seu rebanho.
(...)
Talvez que eu morra no leito
onde a morte é natural
as mãos em cruz sobre o peito
das mãos de Deus tudo aceito
mas que eu morra em Portugal

O poema acima (de que transcrevo parte) chama-se Prece, e foi escrito por Pedro Homem de Melo. Cinco quintilhas com um esquema de rima igual (a-b-a-a-b, com uma ligeiríssima desigualdade) ao dos primeiros versos. Alain Oulman musicou-os. As diferenças são evidentes: a construção da frase, a criatividade de vocabulário.
Amália Rodrigues nunca terá cantado o Menino Órfão e tornou (mais) conhecidos os versos de Pedro Homem de Melo, poeta consagrado e com vasta obra publicada. Para António Xabregas, um dos fadistas que cantou o Menino Órfão, Pedro Homem de Melo não constava do repertório..
De certa forma, Amália Rodrigues, ao cantar poetas consagrados, impôs um padrão, colocou a fasquia num plano elevado. Talvez por isso em Bali, quando se consagrou o fado como património imaterial da humanidade, se tenha escolhido partilhar o Estranha forma de vida (letra de Amália Rodrigues, de que transcrevo parte):

Foi por vontade de Deus
que eu vivo nesta ansiedade.
Que todos os ais são meus,
Que é toda minha a saudade.
Foi por vontade de Deus.
Que estranha forma de vida
tem este meu coração:
vive de forma perdida;
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.

e não o Drama de uma velhinha (letra de Carlos Conde, de que transcrevo também parte)

Senhor Juiz: - Eu sou mãe
E juro que o meu menino
Não me roubou nem me bateu
O cadastro que ele tem
Traduz o negro destino
Da sorte que Deus lhe deu
Neste conto se adivinha,
Mercê de frases tão frias
O triste fim de um ladrão
E o drama de uma velhinha
Que passa todos os dias
A caminho da prisão...

De algum modo pode afirmar-se que Amália Rodrigues matou um certo tipo de fado. Tendo-se tornado no expoente máximo deste género musical – mercê das suas características pessoais e escolhas estéticas – Amália passou a ser a referência, a bitola, o calibre, a régua pela qual tudo se media.
 Por outro lado, Portugal, num esforço de divulgação e transformação do fado, um género intrinsecamente local, em música do mundo, acabou por remeter a poesia fadista mais popular, a que era herdeira da tradição dos ceguinhos que cantavam na rua, para uma espécie de gueto. Porque entre espalhar:

Logo que a freira morreu
A abadessa apareceu
P’ra nestes termos dizer
Ponham-lhe, nas mãos em cruz
A medalha de Jesus
Que ela beijou ao morrer
Mas uma freira absorta
Acercando-se da morta
Nessa medalha pegou
Pôs-se a gritar “Deus me valha”
Não é de Cristo a medalha
Mas do homem que ela amou

ou
Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu,
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro,
Esse olhar que era só teu,
Amor que foste o primeiro.
Que perfeito coração
No meu peito morreria,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração.

não houve hesitação. O fado que se ouviu nas salas de espectáculo do mundo foi o que Amália levou, e que marcou uma época, um ritmo – quase uma norma. O mundo quis ouvir Camões, não o poeta chofer.
***
Retomo o confessio. O objectivo do trabalho é encontrar as várias formas de confissão – do amor, da culpa, do louvor, da esperança, da fé, da vida – numa certa poesia do fado. Descortinar o estilo confessional na poesia mais popular, naquela que vingou em quem veio antes de quem veio antes de Amália. Uma certa poesia que se mantêm no tal gueto, seja porque a quem a canta o ar cá fora lhe é rarefeito, seja porque são uma espécie de guardiões do templo onde se protegem espécies raras em vias de extinção.
A poesia do fado mais popular é profundamente confessional, porque cantar certo fado é cantar o eu com o mundo – a minha ruela, o meu drama, a minha devoção, o meu ciúme, a minha mãezinha, a minha tuberculose, a minha desgraça, o meu filhinho.
Ao escrever uma certa poesia, estes poetas populares não escreviam sobre nada que lhes fosse essencialmente extrínseco: um pôr-do-sol, um renque de flores garridas, um barco no Tejo. Estes poetas, pelo contrário, narravam a sua própria vida com todos os dramas, alegrias, aspirações, amores encontrados ou perdidos, súplicas a Deus.  E não há nada mais confessional do que isso.

Se eu pudesse com a luz minha
dar luz à minha mãezinha
que bom seria meu Deus
cegou para me dar à luz
e hoje por sua cruz
não tem luz nos olhos seus
(...)
Diz o pobre em voz serena,
o ver brilhar faz-me pena,
eu queria cegar também,
ponho o calçado a brilhar
mas brilho não posso dar
aos olhos de minha mãe
Disse o freguês ao garoto
Deus ouviu o teu pedido
porque a tua alma é bela
se tua mãe é ceguinha
porém não é sozinha

também és cego por ela

JdB

2 comentários:

segismundo de bragança disse...

Amália escreveu FOI POR VONTADE DE DEUS,Carlos do Carmo canta È por vontade de Deus, o que está errado. Em primeiro lugar, não tem de alterar o que outra pessoa escreveu; se não percebe, não canta. Em segundo lugar, o que Amália escreveu é que está correcto; Deus, quando criou TUDO, sabia o que cada um iria ser, independente do livre arbítrio. O preso não pode dizer
é por vontade do Juiz, que estou preso, mas sim, foi por vontade do Juiz.
SdB(I)

Vasco disse...

Muito boa análise, João!
Abraço de parabéns.

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