10 junho 2016

Largo da Boa-Hora *

Ocorre-me hoje reflectir sobre a prática da mentira, divergência consciente e intencional entre o real e o anunciado, exercida com o propósito de enganar o destinatário da mensagem.
Ao abordar este tema, a primeira constatação que ressalta é a de que existem inúmeras causas e fins para se mentir, num espectro tão amplo e abrangente que nele se contêm inúmeras variedades entre os extremos que serão, respectivamente, a mentira piedosa e a mentira malévola.
A mentira piedosa é, como a designação sugere, aquela que é animada de uma intenção bondosa, compassiva, cujo único propósito é evitar ou adiar o sofrimento do outro pela omissão do anúncio de uma realidade dramática, cuja oportunidade de conhecimento e de enfrentamento não é evidente. É o que sucede quando se mantém alguém na ignorância de um mal grave, cuja percepção imediata não terá qualquer vantagem. É exemplo de escola, deste tipo de mentira, a informação que o médico guarda para si sobre certo prognóstico grave que admite ou conclui.
A mentira malévola é aquela que é instrumental a burlar o destinatário. É o engano fraudulento, associado a práticas de natureza criminosa e que, pela sua natureza, não justifica mais descrição.
Para este texto seleccionei três tipos de mentiras que me proponho abordar, porque me parecem ser, de entre as tantas categorias, espécimes com particular interesse no relacionamento entre as pessoas.
Elejo, pois, a mentira embuste (que é odiosa), a mentira medo (que é compreensível), e a mentira ânimo (que é louvável).
mentira embuste consiste na sucessão permanente de acções e declarações, falsas e enganosas, por forma a criar em alguém em particular, na intimidade, ou nas pessoas em geral, na comunidade, a convicção de que se é uma pessoa conforme certo modelo, figurino, paradigma, que não têm, todavia, correspondência com a realidade efectiva da natureza do farsante.
mentira embuste fabrica, pois, uma identidade, estado ou condição, que permite ao ilusionista aparentar aos outros aquilo que na realidade não é.
O mentiroso torna-se num personagem por si idealizado, exercido e assumido, distinto de si próprio, passando a viver, em permanência, no desempenho desse papel teatral.
Pela dificuldade, se não mesmo impossibilidade de exercício, a mentira embuste é raramente global, sendo o mais comum exercer-se em algum dos planos sectoriais, possíveis, designadamente, e entre outros, no plano moral, amoroso e familiar, social, profissional ou económico.
É em algum destes planos, ou melhor palcos, que o indivíduo, pela mentira embuste, vai desempenhar o personagem que elegeu e aparentar o que não é.
Para quem for o seu público, o farsante vai aparentar ser homem de bem e de virtudes, quando é na realidade um libertino; vai fingir sentimentos de amor e afectos, quando o que sente é indiferença e descomprometimento; vai jurar amizades, quando se esgota no seu egoísmo e auto-satisfação; vai invocar títulos e feitos importantíssimos, quando o que faz é comum, sem merecer distinção especial; vai alardear fortuna, quando o que cumula são dívidas e trapalhices.
As causas destas vidas em mentira embuste são a imoralidade, a amoralidade, o ego desmedido, a vaidade, a ganância, a ambição, a frustração, a ânsia da sobreposição e domínio dos outros, o egoísmo, o egocentrismo e outras tantas características e patologias de índole no mesmo sentido.
A razão do meu interesse nesta mentira embuste é porque sinto crescer e proliferar a sua adopção como modo de vida e, sinceramente, estou convicto de que os seus cultores são de facto perigosos - sobretudo em tempo adversos, como estes que agora vivemos - porque tendo-se já triturado a si próprios, não hesitam em sacrificar qualquer um para atingir os fins que premeditaram, perigosidade que se agrava nestes cenários de crises económicas e sociais em que vivemos.
Mas, além desse factor de perigo, outro há que me impressiona: é que estes intérpretes da mentira embuste constroem edificações que vêem como fortalezas, mas que não passam de castelos de cartas que, em regra e sem aviso, soçobram em estrondosas derrocadas, arrastando nas consequências desse ruir todos aqueles que de boa-fé neles confiaram e acreditaram, com consequências destrutivas para essas vítimas.
São famílias partidas e perdidas, amores desiludidos e desfeitos, amigos pulverizados, empresas arruinadas, empregos acabados, honorabilidade e lustre social estilhaçados.
Cautela pois, não se dê o caso de a vida de algum de nós gravitar ou ser relevantemente influenciada por algum desses ilusionistas…
Nos antípodas, a mentira medo consiste na fraqueza humana de faltar à verdade por temor que essa mesma verdade possa magoar, desiludir alguém a quem que se quer, por receio que o conhecimento de certo acto ou facto cometido acarrete perdas de confiança, de respeito, de admiração, de amor, de imagem e notoriedade.
Falo tanto de actos ou factos menos próprios e conformes aos projectos e comprometimentos assumidos e em que o outro confia e segue, como, e especialmente, àquelas acções menos conseguidas ou frustradas que se saldaram em fracassos, cuja revelação poderia perigar o equilíbrio da imagem no pedestal.
É muito ténue a linha que, relativamente à mentira medo, a faz ser um acto indigno e cobarde, ou a converte, ao invés, num acto compreensível e, até, recomendável.
Aceitamos o pressuposto de que todos erramos, todos falhamos, todos caímos. O que está em causa é saber se devemos ou não partilhar esses maus momentos ou, pelo contrário, não só silenciá-los, como negá-los se nos forem imputados ou suspeitados.
Trata-se, evidentemente, de uma matéria delicadíssima, em que penso dever ser a sã consciência a ditar a actuação que em cada caso deve ser assumida. Só um verdadeiro, honesto e corajoso exame de consciência nos pode ditar se o bom caminho é a verdade pela confissão, ou a mentira pela negação ou omissão.
E entre outros, esse exame de consciência terá de ajuizar a importância que o erro teve para o próprio, a sua real dimensão, a força das suas causas, as circunstâncias do seu sucedimento, o impacto para o futuro, a sua reparabilidade, ignorando corajosamente, por outro lado, as consequências que a divulgação desse erro importará para o outro, e para a relação entre ambos.
É este julgamento de nós próprios que somos chamados a fazer
Se a conclusão do julgamento for no sentido da constatação de que esse erro, essa queda, essa violação, é grave em si mesma e para si próprio, porque tem efeitos, impactos, dimensão, se sente como consequência ou detonador de modificações, então a mentira medo é cobardia e ignóbil. Porém, se o resultado for que esses percalços foram isso mesmo, meras inerências à frágil condição humana, que foram apenas pó da estrada, então a mentira medo é justificada.
Neste quadro importará, talvez, ponderar três aspectos: primeiro, a expiação de erros é um processo que, se for honesto, é lento e doloroso, não sendo legítimo ir às pressas buscar a absolvição pelo perdão de quem magoámos ou lesámos, sobretudo porque ao fazê-lo passamos sofrimento e angústia ao outro; segundo, ninguém por mais íntimo que seja quer saber tudo sobre o outro, dispensa de bom grado a partilha de certos episódios marginais e inconsequentes; terceiro, o insucesso, se justificado, não tem por efeito a queda do pedestal, pelo contrário, origina mais união, alento e incitamento para o futuro.
Resta-me a mentira ânimo, à qual o espaço já consumido neste texto só me permite uma breve referência.
mentira ânimo é aquela que assumimos para ajudar o outro, para o entusiasmar, para reforçar as suas expectativas e esperanças, para fortalecer a convicção nos seus empreendimentos, para lhe afastar medos, angústias e outras aflições. É aquela que proferimos para sermos o espelho que reflecte a imagem que o outro quer e precisa ver.
Com parcimónia e propriedade é indispensável, em exagero e constantemente é um erro de alucinação do outro.

ATM

* publicado a 10 de Junho de 2009

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