13 junho 2016

Vai um gin do Peter’s?

No final de Abril, um historiador de arquitectura, cronista e político muito conhecido no exigente meio académico de Coimbra – Paulo Varela Gomes (VG; 1952-2016) – morreu como sempre tinha vivido: em luta intensa e desgastante! A novidade foi o último ano, em que ganhou uma bonomia e misteriosa serenidade, ele que agora enfrentava um cancro em último grau. Parecia a circunstância menos lógica para lhe pacificar o feitio truculento e inquieto, depois de um passado aguerrido nas fileiras do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Só que algo novo lhe acontecera, na ocasião menos previsível, dir-se-ia.



A reviravolta deu-se em segundos, quando estava de arma em punho para pôr termo à vida, exausto e revoltado com a degradação física provocada pela doença. Nesse instante dramático, o guerreiro céptico foi invadido por uma estranha alegria, que lhe inspirou ternura e ânimo. Percebeu, então, que era maravilhoso estar vivo, para lá de tudo o que ainda o atormentava. Assim, era um momento ínfimo a revolucionar-lhe a existência, em lugar das várias causas políticas que abraçara com sofreguidão e galhardia. 

Posou a arma, deixou no bosque a parafernália do suicídio e, sem sequer olhar para aquele conjunto tétrico que pertencia a um passado amargo e estéril, voltou ao carro para regressar a casa. 

Quando abriu a porta, ele que minutos antes se despedira da mulher para sempre, reviu  Patrícia, que correu a abraçá-lo, lavada em lágrimas, entre a alegria e o espanto. As palavras eram completamente insuficientes. Em silêncio – sabiam bem que estavam sob o efeito de um autêntico milagre – ficaram agarrados um ao outro a saborear um reencontro que já não era esperado. 

Varela Gomes não hesitou em chamar «espiritual» àquele momento, resguardado pelo arvoredo, em que foi interceptado por uma poderosa luz, que lhe devolveu o sabor fascinante da vida, de maneira quase palpável. Foi o minuto zero de uma nova fase, convertido, segundo o próprio.   

Se dúvidas tivéssemos de que cada pessoa é única e tem um caminho irrepetível, a biografia atribulada de VG ajuda a lembrar esta verdade espantosa sobre o ser humano. Ele que buscara e lutara pela revolução em tantas frentes, apostando na abordagem reivindicativa e inflamada, acabou por protagonizar o maior volte-face de forma gratuita e sem intervir, senão para acolher um dom. Tudo com a simplicidade de uma criança pequenina. Mais tarde, por associações muito pessoais do historiador, resumiu a sua nova experiência com a frase do Evangelho que, séculos antes, inspirara a conversão de S.Francisco Xavier, repetida à exaustão pelo seu amigo Inácio de Loyola: «Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la.»  

Bem treinado no combate, quis deixar em legado o que lhe acontecera, explicando os equívocos em que nos enredamos, quando tomamos por coragem actos que podem estar nos antípodas. Mas, também aqui, talvez mais ainda aqui, há enormes nebulosas e hiatos enigmáticos, pois só o próprio e Deus sabem o que cruza a cabeça e o coração de quem sofre até ao desespero. 

O testemunho lúcido e corajoso de Varela Gomes, escrito em 2015 para a revista «Granta», segue citado sumariamente. A abrir e a rematar sobressaem a frontalidade e uma sede inequívoca de verdade, mesmo quando doi:

«Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”. (…)

Não vou escrever aqui um artigo de (fazer chorar) … primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.  (…)

Quando voltámos para casa (depois de confirmado o pior diagnóstico), não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca. Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. (…)

Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. (…) Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram (…) (d)ois anos e onze meses. 

Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos. (…)

É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. (…)

Depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio (com o psicanalista), lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…” Quem é que estava a falar assim pela minha boca? (…) Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?

A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. (…) Cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.

Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever (…), em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso .(…)

As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei à melancolia (…). Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava… Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim próprio.

Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte. (…)

Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e sem vida (…). Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer? (…)

Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. (…) Pronto, ia morrer. (…) Sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás”.

Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias: “Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.»

  Do artigo «Morrer é mais difícil do que parece», 
disponível online em 
- http://www.blogclubedeleitores.com/2015/06/morrer-e-mais-dificil-do-que-parece-o.html

Bem à maneira dos temperamentos que nasceram guerreiros, andou anos e anos ocupado noutras batalhas em que imprimia ele o ritmo, até a vida o surpreender derivando para um rumo totalmente fora do seu controle. Foi-lhe, então, pedida uma simplicidade e uma ousadia novas, sem as bravatas de outros tempos, mas mais bravura. Uma bravura tranquila e dócil. Estranho? VG explica o paradoxo.    

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

3 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado, Maria, por nos trazer este senhor. Neste caso, senhor é "adjectivo qualificativo de tipo superlativo", na minha gramática pessoal.

Anónimo disse...

Paulo Varela Gomes (1922???- 2016) ou 1952-2016?

Agradeço este post que nos revela quanto se pode ser Grande.

Anónimo disse...

Varela Gomes (Paulo) era diferente porque inteligente.
O seu escrito «Morrer é mais difícil do que parece» comprova-o.
Criado num ambiente familiar de combate ao Estado Novo, não seguiu o percurso habitual — enveredar por caminhos opostos aos de seu Pai. Quem não renega os seus tem de ser Homem. Em contraponto com Anacleto e com Sousa.
Tenho enviado o escrito para vários contactos meus e, independentemente da opção política pessoal, todos se comovem — pois é a Verdade.
EO

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