Do mesmo sol poente
Que arrasta consigo um dia passado
Já basta saber... Que há em nós a saudade a doer
Se afinal recordar é sofrer
Rasga o passdo
Rasga o passado (letra de Álvaro Duarte Simões)
***
Um destes dias, pessoa jovem ainda e que me é recém-próxima, dizia-me mais ou menos isto: mas porque se há-de querer matar um passado? A frase podia ter sido dita por mim, que tenho o hábito estranho, e também criticado, de olhar muito para trás, apesar de tudo o que vejo tirar algo: uma saudade, uma lembrança, uma aprendizagem, um remorso ou um arrependimento, um factor de imobilidade. Mas não fui eu que disse a frase, repito. Foi uma pessoa décadas mais nova do que eu, para quem, estatisticamente falando, o futuro é ainda maior do que o passado. Foi na ressaca da frase, totalmente apropriada à conversa em curso, que me apercebi deste senso comum absolutamente la paliciano: todos, em certo momento, olhamos para trás; e é isso que transforma o passado numa espécie de faca que nos serve ou nos corta, tudo dependendo se lhe pegamos pela lâmina ou pelo cabo.
Seja sempre, seja em momentos específicos (não sei bem...) dentro de nós trava-se uma estranha batalha: o passado, feito de factos palpáveis e mensuráveis, mas também de sentimentos existentes, memórias e saudades, trava uma luta com o futuro, essa coisa que não existe a não ser na nossa imaginação ou no nosso desejo. O resultado desta contenda é sempre um presente que muda a todo o instante, resultado dinâmico desse combate interno entre dois tempos, um existente e o outro por existir.
Olhar para o passado não é olhar para o que foi, como se esta conjugação pretérita conferisse ao exercício uma conotação negativa, ou apenas desinteressante, porque para a frente é que é caminho. O passado é a única coisa que, de facto, existe dentro de nós e em nosso redor. Não é uma criação, um caminho que vamos definindo momento a momento, um desejo ou uma projecção. O passado é a nossa única realidade, é o único activo da nossa existência, o curriculum vitae com que nos candidatamos ao mundo, porque ninguém se apresenta com o que irá fazer, mas com o que fez.
A frase que me foi dita é representativa da mais simples realidade: olhar para o passado não é uma actividade de velho de espírito ou de velho de corpo, de criatura imobilizada e cristalizada naquilo que existiu. Falar no passado pode ser um exercício de enorme lucidez porque, com a existência posta em perigo, não há nada que seja mais parecido com uma bóia de salvação, nem que seja para rejeitar o que houve, para construir um que há, talvez ainda um que haverá. Na sua música Solsbury Hill, Peter Gabriel canta: my heart going boom, boom, boom / son, he said, grab your things, I've come to take you home. Onde é - ou o que é - a nossa casa? É o passado, porque é a única realidade. Por isso a jovem me perguntava, mais duvidosa do que inquieta, porque se havia de matar um passado, já que isso (digo eu...) equivaleria a deixá-la sem abrigo.
O presente é sempre o resultado de uma luta entre o passado e o futuro. Quem nunca olhar para trás - achando ingenuamente que é um campeão do optimismo e do avanço - terá sempre uma vitória por falta de comparência, que é a pior vitória de todas. A vitória nunca é certa, que por vezes o futuro agiganta-se.
JdB
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