Recordando momentos emblemáticos vividos em Cracóvia, no final de Julho, Francisco surpreendeu as centenas de milhares de jovens ali reunidos, recorrendo às características dos teenagers para descrever a misteriosa preferência de Deus pela Humanidade. Parecia estar a referir-se a um óptimo chefe de gangue, daqueles a quem não falta personalidade nem carisma. Assim, defendeu que há carradas de teimosia no amor de Deus, para frisar que nunca desiste, da mesma forma que um surfista capaz não se deixa intimidar com ondas agigantadas, nem desiludir com marés incertas ou um mar irritantemente flat. Confidenciou-lhes: «Deus conta contigo por aquilo que és, não pelo que tens ou pelo teu passado, porque é ‘obstinado’ no amor.»
Papa Francisco | Jornada Mundial da Juventude, Cracóvia, Polónia | 28.7.2016 | © 2016 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A. |
Mostrou como o suposto egocentrismo dos adolescentes é, afinal, uma réplica mal conseguida da ternura infinita por que ansiamos e acaba por esbarrar no limite do amor humano, até mesmo no da mãe mais atenta. Só Deus consegue corresponder ao clamor mais fundo da alma humana: «Ajudar-nos-á pensar que Ele nos ama mais do que nos amamos a nós mesmos, que crê em nós mais do que quanto acreditamos em nós mesmos, que sempre nos apoia como o mais irredutível dos nossos fãs. Aguarda-nos sempre com esperança, mesmo quando nos fechamos nas nossas tristezas e dores, remoendo continuamente as injustiças recebidas e o passado».
Depois de retratar o Pai incansável no amor por nós, era a hora de interpelar a gente nova sobre o que se esperava deles. Assim, Francisco traça o perfil do filho: «Somos os filhos amados de Deus, sempre. Compreendeis então que não se aceitar, viver descontente e pensar de modo negativo significa não reconhecer a nossa identidade mais verdadeira? É como voltar-se para o outro lado enquanto Deus quer pousar o seu olhar sobre mim, é querer apagar o sonho que Ele tem para mim.»
Nascido numa parte do globo onde a festa é rija e colorida, o Papa latino-americano explorou a génese da verdadeira alegria. Afrontou logo a típica armadilha da juventude, atraída por um modelo de felicidade frágil e falacioso. Sim, há muito sofrimento reprimido entre os mais novos, sujeitos aos imprevistos de quem está a crescer e a ter de aguentar fases chatas em que mal se reconhecem. Quantas vezes o mito da boa disposição juvenil esconde os altos e baixos de tantos que navegam ao sabor dos entusiasmos do momento. Entalados entre euforias e decepções, julgam ser os únicos a enfrentar marés-vivas psicológicas, com picos de triunfalismo e cavas abruptas de fracasso. À turbulência do crescimento soma-se uma solidão assustadora, que facilmente degenera em crise de identidade e desespero. Por isso, Francisco foi claríssimo, deixando alertas expressivos contra o perigo do desânimo: «Afeiçoar-nos à tristeza, não é digno da nossa estatura espiritual. Antes pelo contrário; é um vírus que infecta e bloqueia tudo, que fecha todas as portas, que impede de reiniciar a vida, de recomeçar. Deus, por seu lado, é obstinadamente esperançoso: acredita sempre que podemos levantar-nos e não se resigna a ver-nos apagados e sem alegria».
Como bom pedagogo, o Papa voltou ciclicamente ao principal, explicando como a parte de leão cabe a Deus, enquanto ao ser humano basta aceitar a mão que lhe é estendida, vezes sem conta, ao longo da vida: «Deus ama-nos assim como somos, e nenhum pecado, defeito ou erro Lhe fará mudar de ideia. Para Jesus – assim no-lo mostra o Evangelho –, ninguém é inferior e distante, ninguém é insignificante, mas todos somos prediletos e importantes: tu és importante».
Conhecedor dos valores na ordem do dia, Francisco usou a linguagem dos mais novos:
- «Deus conta contigo por aquilo que és, não pelo que tens: a seus olhos, não vale mesmo nada a roupa que vestes ou o telemóvel que usas; não lhe importa se andas na moda ou não, importas-lhe tu. A seus olhos, tu vales; e o teu valor é inestimável».
- «Não vos detenhais à superfície das coisas e desconfiai das liturgias mundanas do aparecer, da maquilhagem da alma para parecer melhor. Em vez disso, instalai bem a conexão mais estável: a de um coração que vê e transmite o bem sem se cansar. E aquela alegria que gratuitamente recebestes de Deus, gratuitamente dai-a porque muitos esperam por ela».
O versículo das Bem-Aventuranças que serviu de divisa à 31ª Jornada Mundial da Juventude |
- «Não tenhais medo de lhe dizer "sim" com todo o entusiasmo do coração, de lhe responder generosamente, de o seguir. Não deixeis anestesiar a alma, mas apostai no amor formoso, que requer também a renúncia, e um "não" forte ao doping do sucesso a todo o custo e à droga de pensar só em si mesmo e nas próprias comodidades».
Ciente dos desafios mais prementes da actualidade, fustigada por nacionalismos xenófobos, o Papa convidou aquela multidão mansa de jovens a reacreditar num planeta aberto à espantosa diversidade de seres humanos. Como antídoto à corrente céptica e de militância ateísta que se vai insinuando, sobretudo no Ocidente rico, propôs: «Poderão considerar-vos sonhadores, porque acreditais numa humanidade nova, que não aceita o ódio entre os povos, não vê as fronteiras dos países como barreiras e guarda as suas próprias tradições, sem egoísmos nem ressentimentos. (…) Não desanimeis! Com o vosso sorriso e os vossos braços abertos, pregais esperança e sois uma bênção para a única família humana, que aqui tão bem representais.»
«(O) olhar de Jesus, (que) não se resigna perante os fechamentos, mas procura o caminho da unidade e da comunhão (e) não se detém nas aparências, mas vê o coração, (permite) fazer crescer outra humanidade, sem esperar louvores, mas buscando o bem por si mesmo, felizes por conservar o coração limpo e lutar pacificamente pela honestidade e pela justiça.»
Relembrou ainda um conselho simples, que considera demasiado esquecido numa sociedade avessa às soluções antigas, de provas dadas, e tenta antes inventar alternativas para se desintoxicar psíquica e espiritualmente. Falava do sacramento do perdão: «Queridos jovens, não vos envergonheis de lhe levar tudo, especialmente as fraquezas, as fadigas e os pecados na Confissão: Ele saberá surpreender-vos com o seu perdão e a sua paz. (…) A memória de Deus «não é um "disco rígido" que grava e armazena todos os nossos dados, mas um coração terno e rico em compaixão, que se alegra em eliminar definitivamente todos os nossos vestígios de mal. Tentemos, também nós agora, imitar a memória fiel de Deus e guardar o bem que recebemos nestes dias.»
Via Sacra na JMJ em Cracóvia |
Na mensagem passada na homilia do último dia, focou-se no futuro, no que importa levar da experiência daquelas Jornadas inesquecíveis para a maioria. Sugeriu truques práticos e fáceis de aplicar:
- «Lembremo-nos disto, no início de cada dia. Far-nos-á bem dizê-lo na oração, todas as manhãs: "Senhor, agradeço-vos porque me amais; fazei-me enamorar da minha vida"; não dos meus defeitos, que hão-de ser corrigidos, mas da vida, que é um grande dom: é o tempo para amar e ser amado».
- «A JMJ – poderíamos dizer – começa hoje e continua amanhã, em casa, porque é lá que Jesus te quer encontrar a partir de agora. (…) O Senhor não quer ficar apenas nesta bela cidade ou em belas recordações, mas deseja ir a tua casa, habitar a tua vida de cada dia: o estudo e os primeiros anos de trabalho, as amizades e os afectos, os projetos e os sonhos. Como lhe agrada que tudo isto seja levado a Ele na oração! Como espera que, entre todos os contactos e os "chat" de cada dia, esteja em primeiro lugar o fio de ouro da oração! Como deseja que a sua Palavra fale a cada uma das tuas jornadas, que o seu Evangelho se torne teu e seja o teu "navegador" nas estradas da vida.»
Depois de propor uma bússola para o dia-a-dia, anunciou o local das próximas Jornadas: em 2019, o Papa espera reencontrar a gente nova na capital do Panamá – aquela língua de terra entre a Colômbia e a Costa Rica, conhecida pelo célebre Canal e pejada de praias de coqueiros, areia branca e água azul turquesa transparente. Uma escolha muito apetitosa.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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