03 janeiro 2017

Da relação unívoca com os amigos

O que habitualmente chamamos amigos e amizades não são senão conhecimentos e familiaridades contraídos quer por alguma circunstância fortuita quer por um qualquer interesse, por meio dos quais as nossas almas se mantêm em contacto. Na amizade de que falo, as almas mesclam-se e fundem-se uma na noutra em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem. Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: «Porque era ele; porque era eu». 

O texto acima é da autoria de Montaigne, retirado do seu célebre ensaio intitulado Da Amizade

Um destes dias, ao conversar sobre temas diversos, ocorreu-me pensar porque é que algumas pessoas são mais fechadas e estabelecem amizades facilmente enquanto que outras, mais joviais e abertas, têm mais dificuldade ou, melhor dizendo, não manifestam tanto interesse em. A simpatia não lhes traz mais militância a esse nível.

O que queremos dos amigos, sendo que a resposta das amizades fortes não se resume, nem pouco mais ou menos, à ideia de que era ele, ou de que era eu? Queremos amigos para nos divertirmos, para nos prestarem favores ou ajuda, para nos ouvirem, para nos falarem, para nos tirarem dúvidas, para serem interlocutores ou, nalguns casos mais específicos, para sermos sacos de pancada de irritações várias... É para isso que eles servem, sendo que o verbo "servir" não deve ser lido de forma negativa. Os nossos amigos são fruto de uma relação acima de tudo unívoca. Eu sou amigo de fulano porque fulano me dá algo: ajuda ou escuta ou orientação ou divertimento, etc.  A amizade de fulano por mim deve-se ao mesmo interesse: fulano encontra em mim ajuda ou escuta ou orientação ou divertimento, etc. É por isso que o maior amigo de fulano pode ser beltrano, mas o melhor amigo de beltrano já pode ser sicrano - nem todos queremos e damos sempre o mesmo e com igual intensidade. 

Ora, se eu dos meus amigos precisar só de divertimento, é só isso que vou procurar - e nada mais quero do que isso. Se não quiser / precisar de ajuda, orientação, escuta, mas apenas, repito, divertimento, o meu leque de amizades assenta nesse pressuposto. No limite, se eu quase nunca precisar de me divertir, quase nunca precisarei de amigos. E se eu não precisar de me divertir nem de ter com quem conversar, não preciso de amigos. A intensidade das amizades está, obviamente, relacionada com isto: só temos o que procuramos.

A ideia de Montaigne é bonita, mas pouco verdadeira. Nunca há um apenas porque era ele; porque era eu... Há sempre mais qualquer coisa: um tempo em que o divertimento nos enche a alma, um tempo em que a partilha nos enriquece, um tempo em que a escuta é uma espécie de peregrinação pelo nosso interior. Sei do que falo, passe a presunção: aos 58 anos estabeleci amizades fortes por pessoas que conhecia de forma relativamente superficial. Mas eram pessoas que queriam falar e eu as escutava, ou eram pessoas que queriam escutar o que eu tinha para lhes dizer. Aconteceu-me o mesmo com amizades com 15 ou 16 anos, reputadamente improváveis. Não foram acasos, foram encontros - pessoas que me divertiam quando eu queria divertimento, me orientavam quando a bússola perdia o norte magnético.

JdB 


2 comentários:

Anónimo disse...


Será a ideia de Montaigne pouco verdadeira, JdB? LEU com atenção o texto a itálico...? O seu texto não contradita o anterior, pelo contrário! Talvez haja que derivar sobre o(s) sentido(s) da Amizade...

Um 2017 cheio de amizades. Bom tema para começar o ano.

JdB disse...

Obrigado Anónimo pela visita.
Talvez não contradiga, de facto. Limitei-me a querer ser presunçosa e pouco originalmente provocador, contrapondo aquela ideia de amizade tão forte de Montaigne por uma pessoa específica a uma dimensão de generosidade composta por dois egoísmos. Afinal, tantas e tantas amizades começam pela necessidade de um e de outro, mais do que pelo altruísmo de um e de outro. Se calhar como foi a amizade que uniu Montaigne a La Boétie...

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