06 abril 2017

Daquilo que me comove

Nestes encontros da comunidade que, nas diversas frentes, luta contra o cancro pediátrico, há sempre alguma coisa que me comove. Já foram as histórias de crianças que lutaram e venceram ou lutaram e perderam; já foram as histórias dos Pais que nunca baixaram os braços ou que encontraram um sentido para a sua vida; já foram as histórias das fragilidades das pessoas, como daquela médica que, treinada para curar, não sabia como dizer a um adolescente ou a uma criança que iriam morrer.  

Jardins de Majorelle, Marraqueche, onde era a casa de Yves St. Laurent (Abril 2017) 

Ontem, no fim da cerimónia de abertura do encontro - uma cerimónia demasiado longa e menos animado do que poderia ser - realizou-se um cocktail nos jardins do hotel.

(E tenho de fazer um parêntesis para contar uma história breve: à saída da sala, um senhor idoso e de bengala aproxima-se de mim com um sorriso franco e aberto, dizendo-me em francês: professeur blablabla? Eu digo que não, que deve ter confundido. Ah! Bien sur, je m'excuse...  No decorrer do beberete dirijo-me à presidente do SIOP -África (Societé International d'Oncologie Pédiatrique) para lhe fazer uma pergunta. Abre-me um sorriso franco, estende-me a mão e diz-me. Steve? Enfim, ontem não era ninguém, apenas pessoas que se parecem vagamente comigo...) 


Jardins de Majorelle, Marraqueche, onde era a casa de Yves St. Laurent (Abril 2017) 

Retomo o texto. Já no fim da noite, colega sul-africano apresenta-me a um médico inglês que, após 30 anos como médico de família em Inglaterra, decide ir viver para os Camarões como oncologista pediátrico voluntário, o que já de si parece ser extraordinário. Falamos sobre os Camarões, sobre a religião do país, a influência inglesa ou francesa, a curiosidade dos norte dos países africanos, mesmo os do sul, terem uma influência muçulmana. Não resisto a fazer-lhe uma pergunta particular: o que o motivou a ir? Foi a ciência, o dinheiro, ou houve qualquer coisa de mais transcendente, de cariz religioso, missionário ou outro? E falei-lhe no médico de Lampedusa (cuja entrevista ao Observador vale muito a pena ser lida, pelo que lá está e pelo que se deduz) da angústia dos sacos onde estavam os cadáveres, da vocação pelo mar. E falei-lhe dos sinais e das coincidências e do serendipismo e da minha filha e de se ser oncologista pediátrico com netos ou filhos pequenos... 

O médico sorriu, meio envergonhado, quase, e falou que sim, que era também isso, que a igreja que o apoia nos Camarões, veio ele a saber, tinha a mesma génese que a igreja dele, e que nascera na sua terra natal. E eu dei por mim mais envergonhado que ele, a fugir, quase, da conversa, para não lhe falar no sentido da vida, no Viktor Frankl, no Céu ou nos anjos, nos sinais e nas coincidências significativas, em tudo aquilo que nos vai comovendo durante uma vida inteira e que só nós, ou outros muito raros, conseguem decifrar. Despediu-se de mim simpaticamente, perguntando-me o nome, dizendo que sim que tudo o que eu dizia fazia muito sentido. Mas eu já estava de esguelha, de lenço na mão, feito pateta, perante um homem que nunca vira, e que se calhar não verei jamais.

Há-de haver quem me entenda, mas África tem um je ne sais quoi...

JdB     

1 comentário:

arit netoj disse...

Extraordinário Príncipe de Serendip!
Beijinhos agradecidos

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