14 outubro 2008

Cartas à minha madrinha

Adorada madrinha do meu coração,

Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.

Presumo-lhe o mata-moscas na gaveta da cozinha, aguardando o regresso do insecto nas fases esvoaçante, cantante e poisante, muito embora não conheça a cronologia certa do animal em questão. Os dias anoitecem mais cedo, fruto de um Outono e de uma natureza implacáveis que oferecem um lágrima furtiva a um amor desavindo, um suspiro a quem vê futuros tristes, um semblante carregado a quem caminha sozinho na estrada da vida. A madrinha não! Manda a empregada fechar cortinas, servir o chá a horas civilizadas e pôr o seu Satie, que as Gymnopédies ajudam à digestão das notícias sombrias.

Fui deambular ontem pelo paredão, pela segunda vez desde que regressei, cumprindo o único ritual desportivo a que me entrego de alma e coração. De onde me encontrava o sol punha-se no Clube Naval, iluminando os mastros das embarcações que oscilam ao sabor manso das ondas, escondendo-se por detrás de prédios altos e que desfeiam a harmonia da linha do horizonte. No lado oposto aparecia a lua, grande, cheia, branca, a suscitar pensamentos libidinosos sobre os comportamentos humanos e a dimensão das marés.

Perto de mim, três jovens preparavam-se para uma corrida retemperadora de dias difíceis de faculdade. Para trás ficavam as estatísticas, os direitos civis, a mecânica dos fluidos ou as perspectivas cavaleiras e perfilavam-se meia dúzia de quilómetros em passo estugado, inundando as camisolas de suor, enrijando os músculos, aliviando a mente de tensões estudantis. Percebi então que um deles se arrastava penosamente numa preguiça invencível – ou talvez fosse numa incapacidade momentânea. Os colegas, sobretudo um mais afoito, incentivavam-no ao esforço: vamos embora Nelson! Se tu não te ajudares a ti próprio não poderei fazer nada por ti. Anda lá, Nelson!

Mas o Nelson, madrinha, não arredava pé do seu ritmo devagar e devagarinho, como quem acha (isto já sou eu a inventar…) que não vale a pena correr para nada nem para coisa nenhuma, que a passada atrás de um objectivo ou de uma singular rapariga loira é desprovida de bom senso. E os outros já lá estavam à frente, quase a apanhar o sol que se resguardava para uma noite de sono, feito bola amarela e perfeita. O Nelson, madrinha, quedou-se lento, talvez sonhando que se ele estivesse imóvel o paredão passasse por ele à velocidade da maratona, oferecendo-lhe a queima de calorias em versão virtual.

Sinto na ponta dos seus lábios – a mesma ponta com que aspira o chá inglês – a pergunta: o menino quer explicar-me o motivo desta história? Ensandeceu? Não riqueza da minha alma (permita-me esta intimidade afectiva) não enlouqueci, mas nem sempre consigo pôr cá fora o que me vai nas entranhas do pensamento. Às vezes até são lugares comuns, como a necessidade de cada um fazer pela vida, não ser como um qualquer nelson parado na visão de um mar sempre diferente, esperando que o excesso ponderal desapareça como por milagre, que o músculo enrijeça sem actividade alguma, que a mente expurgue as negatividades sem que façamos algo por isso.

Olhe madrinha. Hoje dou por mim a acabar textos que redijo apondo-lhes uma vírgula. Ficam como se fossem suspensos no ar, à espera de uma conclusão, de uma réplica ou de uma tréplica. Parece que cheguei a esta fase da minha vida e perdi o interesse pelo travessão (achava muito queirosiano…) ou pelo ponto de exclamação (algo prussiano e directivo). Já tendo passado a fase da interrogação com que demonstrava a minha incredulidade pelos acontecimentos diários, atenho-me na vírgula, como quem fala de interrupções ou de ignorâncias sobre como acabar. Manifeste por mim a sua compaixão antes de evidenciar a sua indignação.

À pergunta sobre quão fundo é o seu amor, estou certo de que a resposta seria ainda imenso. É com essa certeza que me despeço, beijando-lhe as faces gordas numa ternura de afilhado saudoso. Conto, da próxima vez que a visitar, com um abraço forte e gratuito, destes que nos fazem sentir homens frágeis e necessitados de afecto.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não deixo de esboçar um sorriso nestas suas ternas cartas à saudosa madrinha. Imagino-a deleitada com a chávena de chá inglês, óculos pequenos na ponta do nariz(...) e atrevo-me a dizer consigo : - mas que quererá o "piqueno" dizer com isto?

E o piqueno sabe o que diz, e está atento ao que vê, madrinha ...
(atrevimento meu, que nunca tive o prazer de assim chamar quotidianamente a alguém, que sempre viveu no Brasil )


Acho carinhosa essa ideia de vírgula no fim, afinal parece que há sempre mais algo que não é dito, algo eminente que fica suspenso e que se gostaria a todo o momento de acrescentar, de pensar, de refazer,


Hoje de manhã dei comigo a pensar de novo na sua "gestão da consciência", nas perguntas que então fez, e que cutucaram o nelson que trago comigo. E esta figura parece colar-se e grudar-se amorfa e alastrar-se na indefinição,


-"Como vivemos com o escrúpulo e com o merecimento, com a tranquilidade do corpo e o incómodo do espírito, com o sorriso na boca e a ferida na alma?" ...

Penso que trazer a "casa arrumada" deveria ser também e sobretudo trazer a nossa casa interior arrumada, trazer a alma cuidada, limpa, arejada, (...) Feliz,
Esta casa custa cumprir, custa a ignorar o nelson sentado refastelado no sofá à espera, sempre à espera...até que um dia, a alma inquieta, infeliz demais de tanto esperar, o cutuca de novo...

-Vamos nelson, sai do sofá !!!!...

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