09 outubro 2008

O privilégio da amizade

Corria o ano fagueiro de 1971, tinha eu 13 anos. Era Verão e eu escrevera de Borba, onde passava férias em casa de parentes e amigos, a uma singular rapariga loira, pedindo-lhe a ventura do seu namoro. A missiva teve resposta que chegou alguns dias depois. Ela dizia que não, justificando a sua recusa com este argumento, igualmente singular: tudo isso são estupidezes e criancices dos treze anos.
Digo-vos que fiquei arrasado. Já não me bastava a recusa – a primeira de muitas que se seguiram ao longo de tantos anos a virar frangos – como a justificação aduzida era demolidora. Se não era com aquela idade que gozaria a vantagem da criancice, quando seria? Em abono da verdade, diga-se que a rapariga dos meus encantos era mais nova do que eu um mês – eu não avançara ao reconhecimento amoroso com uma adulta. Enfim, talvez fosse…
É esta a recordação mais antiga da minha amizade com o JdC. Talvez estivéssemos a fumar um Português Suave sem filtro, a marca que consumi até ter deixado o vício, preocupado, não com o pulmão, mas com o desequilíbrio entre receitas e despesas. Estaríamos protegidos de visão e olfacto adultos, comentando o desaire amoroso, remexendo a carta, procurando a palavra que me faria sentir que o não era uma graça, uma chalaça, uma brincadeira. Não encontrámos, e o cigarro consumia-se à mesma velocidade que os meus interiores afectivos. E o JdC ouvia, como me ouviu tantas vezes. E talvez tenha dito qualquer coisa, como me disse tantas vezes.
A vida atirou-nos para caminhadas diversas: os vários cinemas de Lisboa, as galerias Ritz para um combinado a horas tardias, a militância política no mesmo partido, as férias, amores e desamores, serões dançantes com slows entusiasmantes, noites prolongadas à volta de uma mesa de cartas, onde a forma de jogar de cada um revelava já posturas num futuro que havia de vir, num amanhã que nem sempre cantou afinado.
A vida manteve-nos aproximados, afastou-nos fruto de circunstâncias próprias, voltou a juntar-nos mercê de uma vontade que nunca se perdeu. De cada vez que nos encontrávamos a conversa recomeçava onde tinha acabado – um dia antes, um mês, um ano. Há amizades que resistem às intempéries, que são reencetadas sem que sejam necessários exercícios de aquecimento.
Passei dois meses em Harare, onde o JdC é chefe de missão e onde exerce o seu cargo com o profissionalismo e competência que todos lhe reconhecem, fruto de um gosto próprio, de um sentido de dever inquestionável, de um olhar atento e lúcido para a realidade política que o rodeia, de uma noção de rectidão e honestidade que se destacam da mediania que nos caracteriza. A história da diplomacia se encarregará de lhe fazer justiça.
Tenho a agradecer-lhe a estadia mais do que seria razoável descrever aqui. Podia referir a disponibilidade para a informação turística e cambial, para a organização de viagens conjuntas, para a apresentação à comunidade portuguesa e diplomática, para o esforço permanente em garantir o meu conforto, o meu bem-estar, a minha tranquilidade como visitante de média / longa duração com necessidades de manutenção de uma actividade profissional.
Podia referir isso tudo – porque seria da mais elementar justiça fazê-lo. Elogiaria a face visível da nossa amizade. No entanto, por baixo deste iceberg visível a olho nu há uma faceta mais importante, mais reconfortante, mais reservada. Chama-se confiança. Derivado de alguns aspectos que não vêm ao caso, muitas vezes o nosso diálogo poderia assemelhar-se a um monólogo de quem quer despejar um saco, confessar um entusiasmo, exprimir uma frustração ou um desejo. Para todos os momentos houve um ouvido que ouviu, uma boca que falou, um cérebro que pensou, um coração que sentiu. Na solidão interior em que muitas vezes me encontrei em Harare tive sempre companhia.
Chegamos ao fim da vida e as nossas amizades vão passando pelo crivo da sabedoria, do entendimento, das semelhanças, das empatias, das partilhas. Algumas ficam pelo caminho, fruto tantas vezes de mal-entendidos, de faltas de comunicação, de desinteresse, ou porque simplesmente já cumpriram a sua função neste serviço da amizade. É reconfortante identificar as que resistem a tudo porque se vão recriando nas suas próprias dificuldades.

Adeus, até ao meu regresso…

3 comentários:

Anónimo disse...

É um prazer renovado, ler o que escreve.
Sinto-me - atrevo-me a dizer-feliz, por saber que bem longe de casa teve :"Para todos os momentos houve um ouvido que ouviu, uma boca que falou, um cérebro que pensou, um coração que sentiu. Na solidão interior em que muitas vezes me encontrei"..., teve uma alma amiga de longos anos, que resistiu ao tempo, às distâncias, à corrosão da vida.
"É reconfortante identificar as que resistem a tudo porque se vão recriando nas suas próprias dificuldades."
Teve um ombro amigo onde chorar os males de amor , "estupidezes e criancices" de todos os anos.
Afinal, um mês faz toda a diferença...

ana v. disse...

Uma palma para o nosso embaixador, que substituiu sozinho toda a tribo durante dois meses. Grande JdC!

Anónimo disse...

Estreio-me a escrever para um blogue e logo para responder a uma tirada destas.
Seja-me permitido, em primeiro lugar, afirmar peremptoriamente que, ao contrário do que se possa aferir da leitura do texto que me apresto a comentar, fui eu o grande beneficiário da visita do João ao Zimbabwe. Não se iludam, a disponibilidade dos meus sentidos para compreender os problemas do João teve sobretudo a ver com a minha própria aprendizagem. Só não tirei notas porque podia parecer mal. É que eu, de facto, gostava de ser como o João e o período que ele passou aqui permitiu-me perceber um pouco mais como é que se procura a felicidade sem comprometer princípios e principalmente, como é que se confronta a adversidade. Enquanto que outros se deixam entorpecer pelas desgraças, o João encontra nelas uma estranha energia que o faz continuar. Enquanto que outros fazem da infelicidade amargura, o João encontra nela campo para a generosidade.
Foi muito bom tê-lo cá também naturalmente pela companhia e pela dinâmica que imprimiu à minha pacata vida pessoal.
Saudades deixa-as um pouco em todos aqueles que com ele conviveram. E até nalguns corações lacrimejantes...
Sobre os elogios exagerados que me faz, aceito-os à conta de uma convincente vontade de agradecer.
E, se apesar de tudo, a estadia lhe foi útil e agradável, fico muito contente.
Até sempre!

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