19 janeiro 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália (data ilegível)

Confesso a minha estranheza quanto ao dia de ontem. De manhã fui a uma consulta médica, para que o especialista ajuizasse do estado da minha perna, se o coxear piorou ou não. Assunto desinteressante, sigamos para bingo, porque a bizarria não está, apesar de tudo, na minha deficiência.

Na sala de espera folheei uma revista cor-de-rosa, destas que evidenciam felicidades eternas em casamentos repetidos, e gente que demonstra uma manancial sem fim de lugares-comuns, todos eles publicados a letras grandes e salientes. Como me dizia no outro dia uma amiga, as gravidezes eram, dantes, alegrias partilhadas na intimidade da família. Agora são notícias de primeira página, ilustradas com frases simples, do tipo é um pouco cedo para falar porque ainda estou de três meses, mas estamos todos muito felizes, ou é um filho muito desejado, ou ainda sinto que não estou a dividir o meu amor, é a dobrar, para aqueles estatisticamente menos vulgares que têm gémeos. Às vezes dou por mim a desejar que alguém diga de uma forma crua: a criança vem, mas não pode vir em pior altura! Que estranho, imaginar-se a alegria da maternidade como uma notícia com direito a parangona. Ser-se mãe ou morder-se o cão tem valência semelhante...

Foi neste número que vi uma reportagem com um jogador de futebol de um dos grandes clubes, onde aparece com a esposa e duas filhas revelando o amor pela família, a tranquilidade e estabilidade que encontrou junto a uma mulher que ganhou um concurso de beleza numas festas regionais. Todo ele é, nas fotografias, carinho, dedicação, respeito e amor, afirmando ideias de fidelidade, felicidade e dependência saudável. A casa é o meu centro de gravidade, rematou, enquanto a Tânia e a Vanessa brincavam com o Pops, um Retriever que debrua a ouro aquele idílio.

Por um alinhamento mais do que bizarro dos astros, o dito jogador de futebol apareceu aqui na Fábrica da Ilusão, revelando a sua chegada através dos ruídos de um motor possante de um carro baixo, de duas portas, platinado. Depois entrou, confiante, com um cabelo rapado dos lados como se fosse um militar norte-americano, uma patilha que mais parecia um fio de cabelo a escorrer junto às orelhas, um casaco vistoso e à moda comprado numa loja chique de um centro comercial e uns sapatos de biqueira quase quadrada.

Tudo nele transpirava confiança, segurança, disponibilidade e vontade para impressionar, criar uma aura de sucesso antecipado. Como se se sentisse disputado ao nível do duelo, e certo de que seria, para qualquer uma das raparigas, um petisco irrecusável. No fundo, no fundo, como se a justiça e correcção do mundo lhe dessem a certeza de que seria pago por uma hora de prazer, e não a inversa.

A Dra. Clara escolheu a Solange, uma brasileira típica: peito pequeno, rabo levantado, desinibida, com espírito de iniciativa e poucos pudores. Uma mulher à altura e com experiência suficiente para domar a fera que se apresentava na recepção, olhando de soslaio e com um ar incomodado para as minhas características físicas. O futebolista está habituado ao porte atlético, ao pé ligeiro, ao olho sagaz, e eu não tenho nada disso. Tem, da fantasia, uma visão própria - e eu sou uma realidade que ele não conhece, a que não está habituado, porque não se senta ao lado do carro potente nem no sofá da casa minimalista.

A Solange foi irrepreensível: deu-lhe as boas noites e dois beijos com uma amplitude muito curta, gabou-lhe o físico e alegou não falhar um jogo do atleta, apelidando o mister, sempre que não o punha a jogar, com duas palavras demolidoras: cafageste incompetente. Depois, mantendo um ar dengoso e brasileiro que foi a perdição de muitos casais estáveis, susurrou-lhe uma proposta ao ouvido. O futebolista riu-se muito, exageradamente, como se fosse dono daquele espaço e respondeu que só vendo.

Seguiu-a para o quarto tirando-lhe as medidas com uma visão de alfaiate. Teve tempo, ainda, de observar o meu olho desfeado por uma cicatriz e a minha perna coxa. Inquietou-se com o contraste Amália versus Solange e seguiu o caminho da ilusão, da caxemira em versão nordestina, do pelo que se afaga com gentileza sábia. Para trás fiquei eu, a realidade desta Fábrica da Ilusão, que espera a saída do futebolista e da brasileira.

MTS

1 comentário:

Anónimo disse...

Ando deliciada com este lupanar: uma madame doutora é um achado! E a sociedade revista à luz da sensibilidade desta Amália também não perco. Para a semana aqui estarei, LOL RF

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