27 fevereiro 2009

as aventuras de pedro no país da melancolia

durante a corrente semana, tive oportunidade de assistir a um "encontro literário" com o escritor / crítico / cronista / blogger / subdirector da "cinemateca nacional" pedro mexia, numa das livrarias de referência da nossa praça.

o tema era relativamente fechado, em torno do formato crónica (porquê a crónica? qual o cânone? quais as suas referências, quanto a cronistas? que lugar ocupa a crónica no seu ofício total, enquanto pessoa que escreve profissionalmente.. e um longo etecétera), mas rapidamente foram chamados à baila outros aspectos da vida literária e do acto criativo tal como pedro mexia o vê, sempre com base na sua experiência pessoal enquanto autor.

qual o motivo que me faz trazer aqui este episódio, perguntarão? porque o pedro, para além de exibir a inteligência, o "wit", a verve que são elementos matriciais da sua escrita - e concomitantemente da sua "persona" -, abordou aspectos "mais existenciais" (não sei bem como dizer de outra forma) que se mostraram extremamente lúcidos e, pelo menos para mim, operativos. por exemplo:

a) a diferença entre o privado e o íntimo. para quem escreve na blogoesfera, trata-se de um tema sempre presente. o que disse o pedro sobre isto? que, nas crónicas, fala sobre o íntimo, mas nunca sobre o privado. é como se a experiência do eu interior, desprovida de contextualização biográfica, situacional, relacional, fosse tão íntima que, a partir de certo ponto, passasse a uma espécie de "proximidade abstracta isenta de elementos biográficos objectivos". pelo contrário, a esfera privada seria aquela em que aparecem nomes, factos terceiros, locais, etc - um inaceitável atentado deontológico, nas palavras do pedro. ora, curiosamente, pouco mais tarde, produziu uma menção curiosa ao facto de na (sua) blogoesfera não existirem tais regras, tal como ele as entende e aplica nos seus exercícios "mais jornaliísticos". por acaso, não estou de acordo. nem que seja isso o que de facto acontece no blog do pedro (actualmente em hibernação, a propósito..), nem que as regras - essas regras - admitam tal diferenciação. tomei este último "statement" à laia de uma "boutade". a influência britânica é assumidamente trave-mestra da sua escrita e todos sabemos que a ironia, e mesmo a polémica, são instrumentos comuns nos melhores escribas - e são tantos - que a língua de shakespeare viu nascer;

b) partindo do título do seu mais recente livro, uma colectânea de crónicas precisamente, de sua graça "nada de melancolia", o pedro mexia referiu esse traço particular, em seu entender, da sua geração (nota importante: tenho a mesma idade do pedro): a melancolia. uma geração que, aos vinte e poucos, experimentava já uma indefinível saudade, ao mesmo tempo que professa uma apenas vaga esperança nos amanhãs que deveriam indubitavelmente cantar. ou seja, como diria o antónio variações, aquela sensação de que "só estou bem onde não estou", tanto no espaço, como no tempo. uma melancolia abstracta e que parece injectada nos genes dos actuais trintinhas e trintões, com toda a "pathos grave" que normalmente traz associada;

c) finalmente, e quanto a mim o "insight" mais magistral da noite, o pedro mexia introduziu o interessante conceito geracional de que esta - a dele, a minha, a nossa - é uma geração partida, dividida. com uma educação ainda "clássica" (por exemplo no que toca à religião, à educação cívica, até na área mais escorregadia dos costumes “tout court"), o que nos aproxima facilmente de quem tem, por exemplo, mais 10 anos, mas também apanhando já o ar do tempo próprio da geração mais nova, que pauta a sua vida por valores e, principalmente, por uma praxis que nada tem a ver com o nosso lado mais "sério, grave, trágico" (por exemplo, a forma "lúdica" como encaram as relações humanas, com cortes e costuras quase sem dor nem especial relevância existencial, afastam-na radicalmente das gerações suas antecessoras). ora, nós, os dos trintas e tais, somos obrigados a conviver com estes dois mundos e sentimo-nos terrivelmente divididos. alguém falou em dissonância cogntivo-afectiva? - pergunto eu.. o pedro fala dessas crianças dos anos setenta e oitenta, ainda sem computadores, ainda sem tanta coisa que hoje faz plenamente parte do nosso modo de vida ocidentalizado e globalizado.

muito mais poderia ser aqui referido. todos esperariam, claro está, a resposta à pergunta: "pedro, quem são para ti os cronistas de referência?". fiquemos apenas com o nome maior, no subjectivo entender do nosso mestre de cerimónias, em língua portuguesa: o mestre nélson rodrigues, esse brasileiro de elevado quilate. descubram-no, por aí, no formato crónica (o resto, a dramaturgia, é mais polémico e eventualmente menos interessante).

em suma: inteligência em movimento, temperada com um humor sofisticado e com o britânico e já atrás referido "wit" (sem tradução directa, infelizmente); uma capacidade notável de observação e de, a partir desta, construir um "insight" relevante; domínio folgado da escrita; um classicismo algo anacrónico que só lhe fica bem. iguaria fina, amigo(a)s.

termino com uma bicada cheia de graça: "não consigo perceber qualquer sentido pejorativo na palavra elitista. com sinceridade, só vejo coisas boas!".

(é agora que, finalmente, vou ter meia-dúzia de comentários ao meu "post", aqui neste mui gentil "adeus, até ao meu regresso"..?)

5 comentários:

DaLheGas disse...

vou então encetar o chorrilho de comentários :)

em a), sou pela liberdade de expressão. o escriba sabe que corre o risco de pisar o risco. se não suspeita do poder das palavras, acaba por aprender.
em b)
fomos formatados para coisas extintas ou em extinção. sim, uma gente de alavanca na mão à procura de outro ponto de apoio para levantar o mundo
em c)
olho para os detrás e com eles sou o ontem, vivo e fresco.
nos que seguem à minha frente busco conforto nas referências e ansiosamente luz. gosto muito dessa geração dos anos 50 e 40. são muito bonitos mas acham-se decadentes. são interessantes e não são massadores. conhecem os limites. têm o defeito de serem descaradamente malabaristas. sozinhos connosco, portam-se bem, respeitam-nos, chegam a convencer-se que nos veneram. mas se estão em maioria, está tudo estragado. olham-nos com desdém, lembram a ignorância que nos habita, tiram-nos o tapete exercendo a hierarquia, negligenciando-nos com grande à vontade, em seu proveito. não nos importamos muito com isso. já tivemos laivos de uma consciência que nos quer preparar para o choque que eles conhecem bem. esse, sim, de que ser novo eternamente é uma perene ilusão.

DaLheGas disse...

confundo "perene" desde a infância. cai perene :))

Anónimo disse...

Engraçado. Sempre que o leio, Gi, fico a pensar: quem será este Gi? Chatear-se-á por raramente lhe fazerem comentários? Será possível sentir-se solidão num blogue? Poderá excluir em vez de aproximar? Lerá ele este «silêncio» de uma forma negativa ou, simplesmente, humana? Irritar-se-á com a espécie de clube privado de amiguinhos para que descamba, por vezes, este blogue? Que alma existirá por detrás dos seus textos? Hoje, tem graça, você sentiu que ia suscitar comentários, mas, a mim, suscitou-os por, pela primeira vez, nos ter interpelado directamente. Comigo é assim: venha a pessoa. Venha sempre a pessoa. Venha, primeiro do que tudo, a pessoa. Olá, Gi, gostei de o conhecer! Já o lia. Já gostava do que lia. Mas hoje gostei particularmente de o ler. A pessoa, remember? Hoje ouvi a voz por detrás das palavras e isso mudou tudo: conheço-o, já falei consigo. É diferente e é melhor. Obrigada, Rita Ferro

gi disse...

3 comentários.. nada mal! ;-).

--

olá, muito obrigado, antes de mais, por terem lido as minhas palavras e respondido. o repto era uma pequenina provocação, não mais do que isso..
começo por dizer que frequento blogs há algum tempo e que, como toda a coisa nova, existe todo um protocolo de relacionamento / comunicação que, na minha modesta opinião, está ainda longe de ser perfeitamente definido (ia escrever: falta um 'cânone'), tanto por escribas como por quem passa, lê e comenta.
é também por isso que, desde que assino um blog, passe a expressão, decidi responder a muito poucos comentários. todos conhecemos a vertigem da estatística, bem disseminada pelo admirável(?) mundo novo das redes sociais ('eu tenho 53 comments na caixa do meu post'; 'eu tenho 354 amigos no facebook e ainda mais no hi5'; e por aí fora). claro que todos gostamos de 'feedback', de sermos lidos, de, no fundo, sermos um bocadinho relevantes - contra o grande olvido, marchar, marchar! eu não fujo a isso, sou humano. mas não me preocupa muito a falta de comentários. desde que comecei a fazer rádio, tirando um ou outro mail simpático (e um ou outro mais crítico da vertente estética, por exemplo), é como se, 'do outro lado', possa estar todo o universo ou apenas uma pessoa. se for apenas uma pessoa, por um momento, será aquele todo o seu universo - e, só por isso, já terá valido a pena. já vai longo, este meu primeiro comentário..

podia contra-argumentar ainda, neste caso relativamente a quem assina 'DaLheGas', que os assuntos geracionais, têm sempre um problema sério: partimos demasiado da nossa própria circunstância e biografia. poderia retorquir-me que 'a experiência da subjectividade' é inescapável, bem sei. mas o ponto é outro. ao escrever o que escrevi, assumi apenas (para além de fazer o elogio do pedro, essa arte tão em desuso) que me revi, enquanto pessoa de carne-e-osso-cv-e-biografia, naquela espécie de sofisticada técnica de decifração do que é esta minha geração (nasci em 1972). e, acredito, o pedro mexia tem razão em vários aspectos, se nos circunscrevermos à essência das coisas. ao mesmo tempo, há aqui, neste assumir do elemento geracional, qualquer de coisa de determinístico que me incomoda - eu que sou um personalista convicto. fugir à lei dos grandes números, à escravatura da circunstância, se quisermos.

finalmente, respondendo à segunda metade do comentário de rita ferro, diria que não posso concordar mais: 'sempre a pessoa'. é também um tema, como dizer, candente, da blogoesfera: o perigo da construção de 'personas', mais ou menos idealizadas. e de algures, para trás, ficar o ser que está na sua génese. se aproximarmos a blogoesfera do conceito de criação artística, então nada mais estamos a fazer do que trazer para o debate a eterna dúvida: 'o artista não tem biografia, para além da própria arte que produz'.. ou será que tem? não resisto a uma 'boutade' mais leve: também eu, quase todos os dias, me pergunto: quem é o gi? acho que, em dias felizes, o que escrevo, o que divulgo, é uma forma de me aproximar um pouco mais da minha essência e de, também, deixar um pouco da minha cosmogonia privada nas ondas digitais. um pequeno 'statement ético', de alguém que só entende a ética e a estética em osmose perfeita..

muito mais haveria para dizer. muito obrigado pelos gentis comentários. apareçam pelo 'flores de inverno', escutem a 'estação de inverno', esses frutos da ternura e da melancolia, da humanidade e, por vezes, do medo.


flores,
gi.

Anónimo disse...

Gi,

Aparentemente, comentários significam diferença e não indiferença, aceitação/regeição de alguém a ponto de se "dar ao trabalho" de escrever alguma coisa a propósito.

Aparentemente...

E se há alturas em que a aparente Indiferença não intimida ou magoa, outras há que de vulneráveis, tudo nos machuca, tudo se avoluma, tudo faz a diferença.

Tento passar ao lado desta aparência, e continuar a Ser o melhor que sei, mas sei também que bem lá no fundinho de mim, em qualquer altura indesejada, voltará essa sensação de regeição, de não aceitação, voltará à tona de novo.
Um dia de cada vez...

Afinal todos queremos ser e sentirmo-nos amados e queridos.

Flores, Mimos, Beijos e Abraços para essa criança linda chamada Gi .

Acerca de mim

Arquivo do blogue