30 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia da morte de Lord Horatio Nelson.

Há páginas do meu diário que parecem estar sob o efeito de um cone de aspiração. Da última vez que me deitei à escrita foi para falar do Sr. Carlos Santos – talvez mesmo Alferes Carlos Santos - militar que foi garboso, cheio de orgulho e dono de uma voz possante e de uma liderança forte. Agora, semi-esquecido dos seus feitos, confia na Honória para pacificar os fantasmas que povoam a parte presente do seu passado.

Mantenho-me de alguma forma no mesmo registo e falo hoje da Gabriela, uma rapariga muito loira e com uma constituição física invejável, mais atlética do que elegante, e que passou pela Academia Militar durante dois anos. Não terminou o curso, porque foi vítima de um problema físico que se revelou tardiamente. Gabriela mantém alguns tiques da vida castrense - disciplina, sentimento de dever, apego às rotinas e às normas de execução permanente -, encantada de um modo muito pessoal pela visão de um pelotão que marcha síncrono e alinhado.

Num segundo trimestre quente e abafado de um ano recente, Gabriela frequentaria um curso internacional em Brest, França, tendo-se deleitado por um aspirante da Escola Naval Francesa com quem manteve um romance tórrido que durou seis semanas. De tarde vencia-se o inimigo – quem quer que ele fosse – e à noite os dois aliados desenhavam uma entente cordiale. Serge, o gaulês, percorreria, numa voragem quase insana, o espaço nacional representado pelo corpo da cadete Gabriela Resende, natural de Penamacor, com aspirações militares, seios rijos e fortes, e uma marca inigualável no teste de Cooper.

Sem Academia Militar e de regresso a Portugal, esta rapariga vive agora num anseio pela informação de um vaso de guerra na linha do horizonte. Quando alguém a informa desse facto, que a inunda de uma alegria nostálgica, a ex-estudante vai até ao mar e observa o rio, a baía. Vê uma corveta, um navio-escola e lembra-se então de Serge, o seu oficial de marinha, com quem partilhou estratégias, planos de ataque, leitura de cartas, identificação das posições inimigas, noites tórridas de amor todas elas faladas em francês.

No remanso de quarenta dias num quarto de hotel, ambos exploraram o corpo alheio na preparação de uma ofensiva, como se os vales, elevações, obstáculos de cada um não fossem mais do que um jogo de guerra que terminaria numa paz feita de beijos, afagos, movimentos simultâneos. A excepção, em termos de idioma, consistia nas vozes de comando que a cadete Gabriela dava ao seu parceiro e que o deixavam em ponto de desvairo. Era como se a ordem unida se revestisse, subitamente, de um manto erótico, sensual, onde a harmonia dos corpos em movimento único e irrepreensível desse azo aos pensamentos mais libidinosos.

O amante despedira-se dela na última manhã do curso. Gabriela fumava um cigarro na cama, com um lençol azul-claro a tapar uma nudez branca, aqui e ali salpicada de sinais. Uma nesga de seio subia e descia ao compasso de uma respiração suave, cadenciada, cheia de confiança num futuro que se lhe abria apaixonado, fruto de um amor que nascera limpo, transparente, falado em francês. A respiração não se alterou quando o aspirante da École Navale, apertando o último botão de uma farda vincada sem mácula, lhe falou na sua mulher e numa petite jolie fille que o esperavam nos arredores de Marselha. Gabriela apagou o cigarro, fechou os olhos, e eliminou os pensamentos derrotistas com informações factuais: nome, posto, número mecanográfico, objectivo da missão.

Agora, de quando em vez recebe um cliente por quem sente afectos estranhos e contraditórios. Lembra-se do francês, da traição, das vozes de comando que o elevavam aos céus da loucura sexual. Baixinho, agarrada ao seu parceiro daquela noite ou daquele fim de tarde, murmura gritos de saudade e desejo:

- Firme! Em sentido! Não mexe! À vontade!

Depois chora, e geme um lamento:

- Destroçar!

Da carteira, Gabriela Resende, ex-cadete da Academia Militar, com uma marca inigualável no teste de Cooper, retira uma fotografia de Serge, fardado, garboso, com um sorriso gentil numa boca bem desenhada. Por trás, uma citação de Lord Horatio Nelson devolve-lhe a importância da realidade, da não distracção dos objectivos, da importância da resistência:

You must consider every man your enemy who speaks ill of your king; and... you must hate a Frenchman as you hate the devil.

Cumpriu-se mais um dia

MTS

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