24 maio 2010

Bem-aventurados os misericordiosos

Fernando Alcácer era juiz num tribunal nos arredores de Lisboa. Homem com vasta experiência na aplicação das leis, há muito que tinha as melhores classificações dentro da magistratura. Quando acontecia um réu recorrer da sua sentença, o tribunal de instância superior confirmava o que o Dr. Alcácer tinha determinado, sinal da justiça da pena aplicada. Não raramente recebia visitas de colegas que, dentro de uma ética que sempre regula as actividades humanas - lícitas ou não -, lhe vinham pedir conselhos, ouvir uma opinião, interpretar o espírito menos óbvio do legislador.

Além da consideração dos seus pares, o juiz era um homem apreciado por advogados, funcionários judiciais, procuradores. Todos lhe reconheciam o rigor, o sentido de humanidade, a atenção às agravantes e às suas inversas, o respeito por uma justiça presumivelmente caracterizada por um venda nos olhos. Reconheciam-lhe, além disso, uma característica que, não sendo inédita, no juiz assumia uma dimensão rara: a memória para matrículas de automóveis de colegas, advogados, funcionários, arguidos, fornecedores... Acontecia frequentemente o dr. Alcácer dirigir-se a uma secretária dizendo:

- Vi sua matrícula ontem no Centro Comercial, D. Arlete... Estivemos lá à mesma hora.

O povo, na sua imensa e pretensa sabedoria, entende que no melhor pano cai a nódoa. No caso vertente a mancha assentou numa fazenda que se chamava Fernando Alcácer, quando da sua boca saiu uma sentença que todos consideraram demasiado branda para o crime económico de um empresário local. Comentou-se o caso e o próprio juiz – naquele seu hábito obsessivo, quase, de fixar todas as matrículas, inclusivamente a do réu – questionou a sua própria brandura. Mas o facto é que vira qualquer coisa, embora não soubesse verbalizar o quê, nem onde, que o levara a decidir daquela forma. Só sabia que algo o impelira a isso, como se o juiz, para além de conhecer as leis e as matrículas, visse também, premonitoriamente, para além do desfocado das vidas reais e comezinhas do presente.

Metera-se no carro e seguira para casa. Com ele seguia um temporal como há muito não se via na região - uma chuva intensa, um vendaval de arrancar árvores, uma trovoada de ensurdecer - e um incómodo que lhe apertava o estômago:

Mas porque fui eu aplicar aquela sentença tão branda... Será que cometi o erro da minha vida? Será que beneficiei quem não devia? Mas o que me passou pela cabeça?

Embrulhado neste estado de espírito, o juiz passaria um sinal vermelho. Pela esquerda, na legitimidade do seu direito de passagem, viu um carro aproximar-se e fazer sinais intensos de luzes, mas o alerta não era mais do que a bateria de holofotes que iluminaria o horror que se aproximava. No último instante, quando o embate estava à distância de um fio de cabelo, Fernando Alcácer foi espectador da sua própria vida: viu-se como menino na escola a chorar uma mãe que desaparecia; como jovem no liceu a sentir o pulular das hormonas adolescentes; reviveu a arritmia cardíaca do primeiro beijo num vão de escada; olhou a imponência da escadaria no primeiro dia em que pôs os pés na faculdade; reviu-se como jovem licenciado em Direito e como estudante do Curso de Estudos Judiciários; suou de novo a angústia da primeira sentença. Reviu, no fundo, toda a sua vida.

Nestas magias que permitem que o tempo tenha uma duração indefinida, houve espaço suficiente para o juiz identificar a matrícula daquele carro e o condutor, um empresário local beneficiário de uma sentença ligeira. Teve a nítida sensação da ironia da situação quando percebeu que o réu culpado sorria para um juiz misericordioso, um instante antes de guinar o carro e embater com uma violência brutal num poste, desfazendo-se num estrondo de chapa esmagada e dor anunciada.

JdB

6 comentários:

Anónimo disse...

Condiz com a essa grande virtude da Misericórdia. Mas e o twist habitual??... ou o twist será a guinada do carro?? Bjs. pcp

Luísa A. disse...

É como diz, João. Todas as actividades – lícitas ou não -, incluindo o empresariado, têm a sua ética. E para um certo empresariado por demais conhecido de todos nós, a regra é que quem, com mais ou menos misericórdia, «se mete com» ele (ou com os seus aliados), «leva». ;-)
P.S.: A propósito de misericórdia, João, lembrou-me do que li há uns tempos acerca das prerrogativas da nossa Misericórdia, fundada pela rainha D. Leonor. Parece que, do conjunto das suas competências e prerrogativas, constava a de acompanhar os condenados ao local da execução, rezando pela salvação da sua alma. E se a corda do cadafalso se partisse, podia também salvar o seu corpo, tocando-o com o estandarte. O que terá acontecido inúmeras vezes, já que cabia ainda à Misericórdia fornecer a corda. Do que se conclui que a ética profissional dos cordoeiros da Misericórdia devia ser um tanto fluida, e que os rapazes rapavam, provavelmente, na matéria-prima… Mas não honravam menos o nome da instituição para que trabalhavam.

arit netoj disse...

De cortar a respiração.
Eu diria mais: uma dupla misericórdia!
Beijinhos e parabéns

fugidia disse...

Caramba, JB!

(mas não creio que tenha gostado do final; não vejo misericórdia: afinal o juiz condenou em pena leve quem [depois] o salvou? Parece-me demasiado umbinguista... ;-) )

Luísa A. disse...

Céus, João, só agora, lendo o comentário da Fugi, percebi que quem guinava o carro era o empresário e não o juiz. Pois assim como há juízes misericordiosos, também há empresários... A brandura da sentença ter-se-á devido, talvez, a esse mútuo reconhecimento. :-)

JdB disse...

PCP, Arit, Luísa, Fugidia: sempre grato pela misericórdia da vossa amabilidade comentarista. Saiba eu retribuir...
Pois é, a Fugidia percebeu a marosca do texto, se bem que talvez não tivesse claro sobre quem guinava o carro no último instante. Daí o 2~comentário da Luísa. Quem sabe o métier profissional da Fugidia perceberá a perspicácia...
Tal como com a saga dos pecados mortais, o meu íntimo desejo é (também) mostrar um outro lado sobre aquilo que nos foi ensinado no percurso religioso, porque os pecados mortais tinham um enquadramento há 300 ou 400 anos que não têm agora.
O Dr. Fernando Alcácer terá sido verdadeiramente misericordioso? Ou excessivamente "umbinguista" (credo, Fugi...)

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